quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O fast food da Justiça rápida

O fascínio pelo fast food da Justiça rápida, cada vez mais despreza e viola as Garantias Fundamentais, sob o pretexto retórico de obter-se a célere pacificação social.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Investigação Penal - Escritório de Advocacia - Monitoramento Ambiental - Inviolabilidade Domiciliar - Ilicitude da Prova

Investigação Penal - Escritório de Advocacia - Monitoramento Ambiental - Inviolabilidade Domiciliar - Ilicitude da Prova (Transcrições)

Inq 2424/RJ*

RELATOR: Min. Cezar Peluso

V O T O  V E N C I D O (s/ ilicitude da prova)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Peço vênia ao eminente Relator, para, na linha do voto proferido pelo Ministro MARCO AURÉLIO, repudiar, como ilícita, a prova penal decorrente de ato que claramente transgrediu a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar.
Como todos sabemos, Senhor Presidente, o Estado, em tema de investigação policial ou de persecução penal, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar inadmissível ilícito constitucional.
A circunstância de a polícia judiciária achar-se investida de poderes que lhe permitem investigar eventuais práticas delituosas não a exonera do dever de observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de esses órgãos incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral.
Tenho para mim, presente o contexto em causa, que os agentes policiais transgrediram a garantia individual pertinente à inviolabilidade domiciliar, tal como instituída e assegurada pelo inciso XI do art. 5º da Carta Política, que representa expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, oponível, por isso mesmo, aos próprios órgãos incumbidos da persecução penal.
Sabemos todos — e é sempre oportuno e necessário que esta Suprema Corte repita tal lição — que a cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, XI) revela-se apta a amparar, também, qualquercompartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade” (CP, art. 150, § 4º, III).
Entendo assistir razão, por isso mesmo, ao Advogado que ora figura como denunciado, no ponto em que sustenta, corretamente, a ilicitude da referida diligência policial, pois a atividade probatória do Poder Público, no caso, decorreu de procedimento de agentes estatais que infringiram, não obstante investidos de mandado judicial, a proteção constitucional dispensada ao domicílio (CF, art. 5º, XI), cuja noção conceitual — que é ampla — estende-se, dentre outros espaços privados, a “compartimento não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade” (como um escritório de Advocacia, p. ex.).
Tal orientaçãoigualmente perfilhada pelo magistério da doutrina (GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código Penal Comentado”, p. 634, item n. 73, 6ª ed., 2006, RT; RUBENS GERALDI BERTOLO, “Inviolabilidade do Domicílio”, p. 60/61, item n. 3.1, Editora Método; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código Penal Anotado”, p. 529/530, 15ª ed., 2004, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal”, p. 614/615, item n. 1.2, 2005, Saraiva; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Direito Penal – Parte Especial”, vol. 2/309, item n. 2.3, 3ª ed., 2004, Saraiva; CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JUNIOR e FABIO MACHADO DE ALMEIDA DELMANTO, “Código Penal Comentado”, p. 300, 5ª ed., 2000, Renovar; LUIZ REGIS PRADO, “Comentários ao Código Penal”, p. 510, item n. 8, 2002, RT) — é também acolhida pela jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 635/341 - RT 689/366 - RT 728/588 – Julgados do TACRIM/SP, vol. 20/322 - RT 416/393 - RT 557/353 - RT 559/341 - RT 668/297 - Julgados do TACRIM/SP, vol. 93/273), inclusive pelo magistério jurisprudencial desta Suprema Corte:

(...). A GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO (...) – CONCEITO DE CASA PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS ESPAÇOS PRIVADOS NÃO ABERTOS AO PÚBLICO, ONDE ALGUÉM EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL: NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI).
- Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de casa’ revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, ‘embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita’ (NELSON HUNGRIA). Doutrina. Precedentes.
- Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público (...) poderá, contra a vontade de quem de direito (‘invito domino’), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude material. Doutrina. Precedentes específicos, em tema de fiscalização tributária, a propósito de escritórios de contabilidade (STF). (...). (HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma)

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, Senhores Ministros, qualquer que seja a natureza da atividade desenvolvida por agentes do Poder Público, em tema de repressão penal, que a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar atua como fator de restrição às diligências empreendidas pelos órgãos do Estado, que não poderão desrespeitá-la, sob pena de o ato transgressor infirmar a própria validade jurídica da prova resultante de tal ilícito comportamento.
É imperioso, portanto, que as autoridades e agentes do Estado não desconheçam que a proteção constitucional ao domicílio — que emerge, com inquestionável nitidez, da regra inscrita no art. 5º, XI, da Carta Política — tem por fundamento norma revestida do mais elevado grau de positividade jurídica, que proclama, a propósito do tema em análise, que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (grifei).
Vê-se, pois, que a Carta Federal, em cláusula que tornou juridicamente mais intenso o coeficiente de tutela dessa particular esfera de liberdade individual, assegurou, em benefício de todos, a prerrogativa da inviolabilidade domiciliar. Sendo assim, ninguém, absolutamente ninguém, especialmente a autoridade pública, pode penetrar em casa alheia, exceto (a) nas hipóteses taxativamente previstas no texto constitucional (dentre as quais figura a ordem judicial, desde que cumprida, no entanto, “durante o dia”) ou, então, (b) com o consentimento de seu morador, que se qualifica, para efeito de ingresso de terceiros no recinto privado, como o único titular do direito de inclusão e de exclusão.
Impõe-se enfatizar, por necessário, como previamente já destacado, que o conceito decasa”, para o fim da proteção jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Lei Fundamental, reveste-se de caráter amplo (HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO), pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
Esse amplo sentido conceitual da noção jurídica decasa” revela-se plenamente consentâneo com a exigência constitucional de proteção à esfera de liberdade individual e de privacidade pessoal (RT 214/409 - RT 277/576 - RT 467/385 - RT 635/341).
Sendo assim, Senhores Ministros, é preciso advertir – e advertir sempre - que nem a Polícia Judiciária, nem o Ministério Público, nem quaisquer outros agentes públicos podem ingressar em domicílio alheio, sem ordem judicial (neste caso, apenasdurante o dia”), ou sem o consentimento de seu titular, ou, ainda, fora das hipóteses autorizadas pelo texto constitucional, com o objetivo de proceder a qualquer tipo de diligência, como a instalação de aparelhos para escuta ambiental, a exemplo do que sucedeu, de modo inteiramente ilegítimo, na espécie ora em exame.
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Não, Senhor Presidente, o que se mostra inconstitucional, no caso, é a execução, pela Polícia Federal, da diligência probatória de que resultou a instalação, no escritório de Advocacia do denunciado, de aparelhos de escuta ambiental.
A Polícia Federal não podia, ainda que munida de autorização judicial dada por esta Suprema Corte, ingressar, durante a noite, em espaço privado protegido pela cláusula constitucional da inviolabilidade domiciliar (um escritório de Advocacia), pois a Constituição, tratando-se de determinação judicial, somente permite o seu cumprimento “durante o dia”, como resulta claro, inequívoco, do que se acha previsto na parte final do inciso XI do art. 5º de nossa Lei Fundamental.
Não obstante essencial a existência de ordem emanada de autoridade competente do Poder Judiciário, para efeito de legítima incursão de agentes estatais em espaço privado abrangido pela noção tutelar de “casa”, mostra-se importante advertir que a eficácia do mandado judicial restringe-se, unicamente, no plano temporal, às diligências que devem ser executadas “durante o dia” (CF, art. 5º, XI, “in fine”), de tal modo que se reputará inconstitucional a execução, durante a noite, de qualquer determinação judicial, ainda que resultante de decisão proferida por esta Suprema Corte.
O fato irrecusável, Senhor Presidente, é que houve, na espécie, transgressão da garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, pois os escritórios de Advocacia subsumem-se à noção de “casa”, para efeito de incidência do art. 5º, inciso XI, “in fine”, da Constituição.
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Senhor Ministro CARLOS BRITTO, tem prestigiado, sempre com apoio em valioso magistério doutrinário (como aquele a que me referi em passagem anterior deste meu voto), o entendimento de que é ampla a noção de “casa” para efeito de incidência da garantia constitucional que protege a inviolabilidade domiciliar.
Veja-se, por exemplo, decisão emanada desta Suprema Corte, na qual o Supremo Tribunal Federal, uma vez mais, estendeu, aos escritórios profissionais (desde que na situação referida no art. 150, § 4º, n. III, do Código Penal), a proteção que a Constituição da República atribui à “casa”:

(...) A GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIACONCEITO DE CASA PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL – AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS ESPAÇOS PRIVADOS NÃO ABERTOS AO PÚBLICO, ONDE ALGUÉM EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL: NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI).
- Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de casarevela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, ‘embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita’ (NELSON HUNGRIA). Doutrina. Precedentes. (...).” (HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: São precedentes extremamente valiosos e que tornam efetiva, contra os excessos do Poder Público, a tutela constitucional da inviolabilidade domiciliar.
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Realmente, tratando-se de crime permanente, torna-se invocável, pelos agentes do Estado, a exceção constitucional que permite o ingresso legítimo de qualquer pessoa (inclusive da Polícia), a qualquer momento (do dia ou da noite), em espaços privados protegidos pela inviolabilidade domiciliar, pois — como todos sabemos — o momento consumativo do delito permanente protrai-se no tempo, expondo, o seu autor, à situação de flagrância. E a situação de flagrância — insista-se — autoriza, mesmo “invito domino”, o ingresso legítimo de terceiros em casa alheia, como se vê da regra inscrita no art. 5º, inciso XI, da Constituição.
Assinale-se que esse entendimento, que resulta da Constituição (art. 5º, XI) e da legislação (CPP, art. 303), tem o beneplácito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 63/622 - RTJ 78/682) e dos Tribunais em geral (RT 752/577, v.g.).
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Ocorre que o conceito normativo de “casa”, para efeito da proteção constitucional, não comporta essa interpretação tão restritiva e lesiva a uma das mais expressivas garantias constitucionais de que dispõe o cidadão em face do Estado. Para os fins de incidência da tutela constitucional da inviolabilidade domiciliar, qualquer espaço privado que se ajuste ás hipóteses previstas na lei (CP, art. 150, § 4º), “embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita” (NELSON HUNGRIA), tem a proteção jurídica instituída em nossa Lei Fundamental, como tem sido reconhecido, inúmeras vezes, pela própria jurisprudência desta Suprema Corte.
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Insisto em que a proteção constitucional do domicílio não se reduz nem se restringe, como advertem a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (a que fiz expressa referência em passagem anterior deste voto), apenas ao espaço de moradia, como se dá em relação a quartos ocupados de hotel ou de pensão.
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Daí recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, de que fui Relator (RHC 90.376/RJ), em que se concedeu ordem de “habeas corpus”, porque a polícia ingressou, sem mandado judicial, em quarto ocupado de hotel, na cidade do Rio de Janeiro.
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: A interpretação que os eminentes Ministros CEZAR PELUSO e CARLOS BRITTO estão dando à cláusula constitucional que dispõe sobre a garantia de inviolabilidade domiciliar revela-se extremamente preocupante, porque desvaloriza uma importante proteção, impregnada de fundamental importância, que ampara as pessoas contra a indevida intrusão do Estado e a ilegítima interferência de seus agentes.
Reafirmo, como já enfatizei em passagem anterior deste voto, que a noção conceitual de domicílio, para efeito de proteção constitucional, é ampla e é também acolhida pela jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 635/341 - RT 689/366 - RT 728/588 - Julgados do TACRIM/SP, vol. 20/322 - RT 416/393 - RT 557/353 - RT 559/341 - RT 668/297 - Julgados do TACRIM/SP, vol. 93/273), inclusive pelo magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
(...)
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: , realmente, uma clara distinção conceitual e de conteúdo entre as noções de privacidade e de intimidade. Ambas são valores constitucionais protegidos por nosso estatuto fundamental.
(...)

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Ao contrário, Senhor Ministro, os organismos policiais podem executar, sem qualquer transgressão a direitos e garantias fundamentais, a ordem judicial destinada a introduzir, em determinado espaço privado amparado pela garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, aparelhos de escuta ambiental, fazendo-o, por exemplo, sempre durante o dia, em períodos em que o escritório profissional esteja fechado, como aos sábados ou domingos.
Esse, contudo, é um problema meramente operacional, mas que, se enfrentado de maneira adequada, evitará a prática inaceitável de desrespeito, pelos agentes estatais, a uma garantia constitucional tão cara à liberdade das pessoas.
É preciso respeitar os direitos e prerrogativas que a Constituição da República estabelece em favor de qualquer pessoa sob persecução penal.
A execução de ordens judiciais não pode transgredir o regime das liberdades públicas, sob pena de gravíssima ofensa à autoridade suprema da Constituição de nosso País.
Note-se, portanto, seja com apoio no magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, seja com fundamento nas lições da doutrina, que a transgressão, pelo Poder Público, das restrições e das garantias constitucionalmente estabelecidas em favor dos cidadãos — inclusive daqueles a quem se atribuiu suposta prática delituosa — culminará por gerar gravíssima conseqüência, consistente no reconhecimento da ilicitude da prova eventualmente obtida no curso das diligências estatais.
Isso, uma vez ocorrido, provocará, como direta conseqüência desse gesto de infidelidade às limitações impostas pela Lei Fundamental, a própria inadmissibilidade processual dos elementos probatórios assim coligidos.
Impõe-se relembrar, bem por isso, Senhores Ministros, até mesmo como fator de expressiva conquista (e preservação) dos direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas. A Constituição da República tornou inadmissíveis, no processo, as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude.
A norma inscrita no art. 5º, LVI, da vigente Lei Fundamental consagrou, entre nós, o postulado de que a prova obtida por meios ilícitos deve ser repudiada — e repudiada sempre (MAURO CAPPELLETTI, “Efficacia di prove illegittimamente ammesse e comportamento della parte”, “in Rivista di Diritto Civile, p. 112, 1961; VICENZO VIGORITI, “Prove illecite e Costituzione”, “in” Rivista di Diritto Processuale, p. 64 e 70, 1968) — pelos juízes e Tribunais, “por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade...” (ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito Processual” p. 62, 1990, Forense Universitária).
A cláusula constitucional do “due process of law” — que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público — tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu (contra quem jamais se presume provada qualquer alusão penal) tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo ordenamento jurídico, ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado.
A absoluta nulidade da prova ilícita qualifica-se como causa de radical invalidação de sua eficácia jurídica, destituindo-a de qualquer aptidão para revelar, legitimamente, os fatos e eventos cuja realidade material ela pretendia evidenciar. Trata-se, presente tal contexto, de conseqüência que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo (notadamente em juízo penal) e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova — de qualquer provacuja ilicitude venha a ser reconhecida pelo Poder Judiciário.
A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explícita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. A prova ilícita, qualificando-se como providência instrutória repelida pelo ordenamento constitucional, apresenta-se destituída de qualquer grau de eficácia jurídica, por mínimo que seja, como esta Suprema Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 163/682 - RTJ 163/709 - HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Tenho tido a oportunidade de enfatizar, por isso mesmo, neste Tribunal, que a exclusionary rule” - considerada essencial, pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, na definição dos limites da atividade probatória desenvolvida pelo Estado - destina-se a proteger os réus, em sede processual penal, contra a ilegítima produção ou a ilegal colheita de prova incriminadora (Weeks v. United States, 232 U.S. 383, 1914 - Garrity v. New Jersey, 385 U.S. 493, 1967 - Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961 - Wong Sun v. United States, 371 U.S. 471, 1963, v.g.), impondo, em atenção ao princípio do “due process of law”, o banimento processual de quaisquer evidências que tenham sido ilicitamente coligidas pelo Poder Público.
No contexto do sistema constitucional brasileiro, no qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o sentido e o alcance do art. 5º, LVI, da Carta Política, tem repudiado quaisquer elementos de informação, desautorizando-lhes o valor probante, sempre que a obtenção dos dados probatórios resultar de transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo (RTJ 163/682 - RTJ 163/709), ainda que se cuide de hipótese configuradora de ilicitude por derivação (RTJ 155/508).
Foi por tal razão que esta Corte Suprema, quando do julgamento plenário da Ação Penal 307/DF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, desqualificou, por ilícita, prova cuja obtenção decorrera do desrespeito, por parte de autoridades públicas, da garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar (RTJ 162/4, item n. 1.1).
Cabe referir, neste ponto, o magistério de ADA PELLEGRINI GRINOVER (“Liberdades Públicas e Processo Penal”, p. 151, itens ns. 7 e 8, 2ª ed., 1982, RT), para quem - tratando-se de prova ilícita, especialmente daquela cuja produção derive de ofensa a cláusulas de ordem constitucional - não se revelará aceitável, para efeito de sua admissibilidade, a invocação do critério de razoabilidade do direito norte-americano, que corresponde ao princípio da proporcionalidade do direito germânico, mostrando-se indiferente a indagação sobre quem praticou o ato ilícito de que se originou o dado probatório questionado:

A inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros.
Nesses casos, é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da personalidade. Será também irrelevante indagar-se a respeito do momento em que a ilicitude se caracterizou (antes e fora do processo ou no curso do mesmo); será irrelevante indagar-se se o ato ilícito foi cumprido contra a parte ou contra terceiro, desde que tenha importado em violação a direitos fundamentais; e será, por fim, irrelevante indagar-se se o processo no qual se utilizaria prova ilícita deste jaez é de natureza penal ou civil.
...................................................
Nesta colocação, não parece aceitável (embora sugestivo) o critério de razoabilidade’ do direito norte-americano, correspondente ao princípio de proporcionalidade’ do direito alemão, por tratar-se de critérios subjetivos, que podem induzir a interpretações perigosas, fugindo dos parâmetros de proteção da inviolabilidade da pessoa humana.
A mitigação do rigor da admissibilidade das provas ilícitas deve ser feita através da análise da própria norma material violada: (...) sempre que a violação se der com relação aos direitos fundamentais e a suas garantias, não haverá como invocar-se o princípio da proporcionalidade.” (grifei)

Essa mesma orientação é registrada por VÂNIA SICILIANO AIETA (“A Garantia da Intimidade como Direito Fundamental”, p. 191, item n. 4.4.6.4, 1999, Lumen Juris), cujo lúcido magistério também reconhece que, “Atualmente, a teoria majoritariamente aceita é a da inadmissibilidade processual das provas ilícitas (colhidas com lesões a princípios constitucionais), sendo irrelevante a averiguação, se o ilícito foi cometido por agente público, ou por agente particular, porque, em ambos os casos, lesa princípios constitucionais” (grifei).
Por isso mesmo, Senhores Ministros, assume inegável relevo, na repulsa à “crescente predisposição para flexibilização dos comandos constitucionais aplicáveis na matéria”, a advertência de LUIS ROBERTO BARROSO, que, em texto escrito com a colaboração de ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Viagem Redonda: Habeas Data, Direitos Constitucionais e as Provas Ilícitas” “inRDA 213/149-163), rejeita, com absoluta correção, qualquer tipo de prova obtida por meio ilícito, demonstrando, ainda, o gravíssimo risco de se admitir essa espécie de evidência com apoio no princípio da proporcionalidade:

O entendimento flexibilizador dos dispositivos constitucionais citados, além de violar a dicção claríssima da Carta Constitucional, é de todo inconveniente em se considerando a realidade político-institucional do País.
...................................................
Embora a idéia da proporcionalidade possa parecer atraente, deve-se ter em linha de conta os antecedentes de País, onde as exceções viram regra desde sua criação (vejam-se, por exemplo, as medidas provisórias). À vista da trajetória inconsistente do respeito aos direitos individuais e da ausência de um sentimento constitucional consolidado, não é nem conveniente nem oportuno, sequer de lege ferenda’, enveredar por flexibilizações arriscadas.” (grifei)

Também corretamente sustentando a tese de que o Estado não pode, especialmente em sede processual penal, valer-se de provas ilícitas contra o acusado, mesmo que sob invocação do princípio da proporcionalidade, impõe-se relembrar o entendimento de EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO (“O Direito à Defesa na Constituição”, p. 54/56, item n. 5.9, 1994, Saraiva) e de GUILHERME SILVA BARBOSA FREGAPANI (“Prova Ilícita no Direito Pátrio e no Direito Comparado”, “in” Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios nº 6/231-235).
Cabe ter presente, também, por necessário, que o princípio da proporcionalidade, em sendo alegado pelo Poder Público, não pode converter-se em instrumento de frustração da norma constitucional que repudia a utilização, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos.
Esse postulado, portanto, não deve ser invocado nem aplicado indiscriminadamente pelos órgãos do Estado, ainda mais quando se acharem expostos, a uma nítida situação de risco, como sucedeu na espécie, direitos fundamentais assegurados pela Constituição.
Sob tal perspectiva, portanto, Senhores Ministros, tenho como incensurável a advertência feita por ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Proibição das Provas Ilícitas na Constituição de 1988, p. 249/266, “in” “Os 10 Anos da Constituição Federal”, coordenação de ALEXANDRE DE MORAES, 1999, Atlas):

Após dez anos de vigência do texto constitucional, persistem as resistências doutrinárias e dos tribunais à proibição categórica e absoluta do ingresso, no processo, das provas obtidas com violação do direito material.
Isso decorre, a nosso ver, em primeiro lugar, de uma equivocada compreensão do princípio do livre convencimento do juiz, que não pode significar liberdade absoluta na condução do procedimento probatório nem julgamento desvinculado de regras legais. Tal princípio tem seu âmbito de operatividade restrito ao momento da valoração das provas, que deve incidir sobre material constituído por elementos admissíveis e regularmente incorporados ao processo.
De outro lado, a preocupação em fornecer respostas prontas e eficazes às formas mais graves de criminalidade tem igualmente levado à admissão de provas maculadas pela ilicitude, sob a justificativa da proporcionalidade ou razoabilidade. Conquanto não se possa descartar a necessidade de ponderação de interesses nos casos concretos, tal critério não pode ser erigido à condição de regra capaz de tornar letra morta a disposição constitucional. Ademais, certamente não será com o incentivo às práticas ilegais que se poderá alcançar resultado positivo na repressão da criminalidade.” (grifei)

É indisputável, portanto, examinada a questão sob tal perspectiva, que a prova ilícita, por constituir prova juridicamente inidônea, contamina todos os demais elementos de informação que dela resultem, e que sejam coligidos em momento ulterior, ainda que de maneira válida, pelos órgãos da persecução penal.
A ilicitude originária da prova, nesse particular contexto, transmite-se, por repercussão, a outros dados probatórios que nela se apoiem, ou que dela derivem, ou que nela encontrem o seu fundamento causal.
ADA PELLEGRINI GRINOVER (“A Eficácia dos Atos Processuais à luz da Constituição Federal”, vol. 37/46-47, 1992, “in” RPGESP), ao versar o tema das limitações que, fundadas em regra de exclusão, incidem sobre o direito à prova, analisa a questão da ilicitude - mesmo da ilicitude por derivação - dos elementos instrutórios produzidos em sede processual, em lição da qual destaco:

A Constituição brasileira toma posição firme, aparentemente absoluta, no sentido da proibição de admissibilidade das provas ilícitas. Mas, nesse ponto, é necessário levantar alguns aspectos: quase todos os ordenamentos afastam a admissibilidade processual das provas ilícitas. Mas ainda existem dois pontos de grande divergência: o primeiro deles é o de se saber se inadmissível no processo é somente a prova, obtida por meios ilícitos, ou se é também inadmissível a prova, licitamente colhida, mas a cujo conhecimento se chegou por intermédio da prova ilícita.
Imagine-se uma confissão extorquida sob tortura, na qual o acusado ou indiciado indica o nome do comparsa ou da testemunha que, ouvidos sem nenhuma coação, venham a corroborar aquele depoimento.
Imaginem uma interceptação telefônica clandestina, portanto ilícita, pela qual se venham a conhecer circunstâncias que, licitamente colhidas, levem à apuração dos fatos. Essas provas sãoilícitas por derivação’, porque, em si mesmas lícitas, são oriundas e obtidas por intermédio da ilícita. A jurisprudência norte-americana utilizou a imagem dos frutos da árvore envenenada, que comunica o seu veneno a todos os frutos. (...). (grifei)

Incensurável a análise que, deste tema, fez o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, em voto proferido, como Relator, no julgamento do HC 69.912/RS (RTJ 155/508, 515):

Estou convencido de que essa doutrina da invalidade probatória dofruit of the poisonous treeé a única capaz de dar eficácia à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita.
De fato, vedar que se possa trazer ao processo a própria ‘degravação’ das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que, sem tais informações, não colheria, evidentemente, é estimular e, não, reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina de conversas privadas.
...................................................
Na espécie, é inegável que só as informações extraídas da escuta telefônica indevidamente autorizada é que viabilizaram o flagrante e a apreensão da droga, elementos também decisivos, de sua vez, na construção lógica da imputação formulada na denúncia, assim como na fundamentação nas decisões condenatórias.
Dada essa patente relação genética entre os resultados da interceptação telefônica e as provas subseqüentemente colhidas, não é possível apegar-se a essas últimas - frutos da operação ilícita inicial - sem, de fato, emprestar relevância probatória à escuta vedada.” (grifei)

Irrecusável, por isso mesmo, o fato de que a ineficácia probatória dos elementos de convicção — cuja apuração tenha decorrido, em sua própria origem, de comportamento ilícito dos agentes estatais — torna imprestável, por derivação, a prova penal, inibindo-lhe, assim, a possibilidade de atuar como suporte legitimador de qualquer decisão judicial, mesmo aquela que recebe a denúncia.
Esse entendimento, Senhores Ministros, que constitui a expressão mesma da teoria dosfrutos da árvore envenenada” (“fruits of the poisonous tree”) – firmada e desenvolvida na prática jurisprudencial da Suprema Corte dos Estados Unidos da América (“Nardone v. United States, 308 U.S. 338 (1939); Wong Sun v. United States, 371 U.S. 471 (1963); Weeks v. United States, 232 U.S. 383 (1914); Payton v. New York, 445 U.S. 573 (1980)”) -, encontra pleno suporte na jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RTJ 155/508, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RTJ 164/950, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI - RTJ 168/543-544, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - RTJ 176/735-736, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 74.116/SP, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA - HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

(...) 3. As provas obtidas por meios ilícitos contaminam as que sãoexclusivamentedelas decorrentes; tornam-se inadmissíveis no processo e não podem ensejar a investigação criminal e, com mais razão, a denúncia, a instrução e o julgamento (CF, art. 5º, LVI), ainda que tenha restado sobejamente comprovado, por meio delas, que o Juiz foi vítima das contumélias do paciente.
4. Inexistência, nos autos do processo-crime, de prova autônoma e não decorrente de prova ilícita, que permita o prosseguimento do processo.
5.Habeas-corpus’ conhecido e provido para trancar a ação penal instaurada contra o paciente, por maioria de 6 votos contra 5. (HC 72.588/PB, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - grifei)
(...) A QUESTÃO DA DOUTRINA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA (‘FRUITS OF THE POISONOUS TREE’): A QUESTÃO DA ILICITUDE POR DERIVAÇÃO.
- Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subseqüente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária.
- A exclusão da prova originariamente ilícita - ou daquela afetada pelo vício da ilicitude por derivação - representa um dos meios mais expressivos destinados a conferir efetividade à garantia do ‘due process of law’ e a tornar mais intensa, pelo banimento da prova ilicitamente obtida, a tutela constitucional que preserva os direitos e prerrogativas que assistem a qualquer acusado em sede processual penal. Doutrina. Precedentes.
- A doutrina da ilicitude por derivação (teoria dos ‘frutos da árvore envenenada’) repudia, por constitucionalmente inadmissíveis, os meios probatórios, que, não obstante produzidos, validamente, em momento ulterior, acham-se afetados, no entanto, pelo vício (gravíssimo) da ilicitude originária, que a eles se transmite, contaminando-os, por efeito de repercussão causal. Hipótese em que os novos dados probatórios somente foram conhecidos, pelo Poder Público, em razão de anterior transgressão praticada, originariamente, pelos agentes da persecução penal, que desrespeitaram a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar.
- Revelam-se inadmissíveis, desse modo, em decorrência da ilicitude por derivação, os elementos probatórios a que os órgãos da persecução penal somente tiveram acesso em razão da prova originariamente ilícita, obtida como resultado da transgressão, por agentes estatais, de direitos e garantias constitucionais e legais, cuja eficácia condicionante, no plano do ordenamento positivo brasileiro, traduz significativa limitação de ordem jurídica ao poder do Estado em face dos cidadãos. (RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Tal orientação, Senhores Ministros, é também acolhida pelo magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional”, p. 386, item n. 5.102, 6ª ed., 2006, Atlas; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 304, item n. 17.2.4.5, 13ª ed., 2006, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 401, item n. 155.4, 7ª ed., 2000, Atlas; RACHEL PINHEIRO DE ANDRADE MENDONÇA, “Provas Ilícitas: Limites à Licitude Probatória”, p. 78, item n. 3.1, 2ª ed., 2004, Lumen Juris; GUILHERME DE SOUZA NUCCI, “Código de Processo Penal Comentado”, p. 340/341, item n. 5, 4ª ed., 2005, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Ordem Judicial de Busca Apreensão e Ilicitude da Prova dela Extrapolante”, “inRT 848/457-470, 468-469; LENIO LUIZ STRECK, “As Interceptações Telefônicas e os Direitos Fundamentais”, p. 92, item n. 13.2, 1997, Livraria do Advogado), valendo referir, ante o relevo de suas observações, a lição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (“Código de Processo Penal Comentado”, vol. 1/474-476, 9ª ed., 2005, Saraiva):

Não só as provas obtidas ilicitamente são proibidas (busca domiciliar sem mandado judicial, escuta telefônica sem autorização da autoridade judiciária competente, obtenção de confissões mediante toda sorte de violência etc.), como também as denominadas ‘provas ilícitas por derivação’.
Na verdade, ao lado das provas ilícitas, há a doutrina dofruit of the poisonous tree’, ou simplesmente ‘fruit doctrine’ – ‘fruto da árvore envenenada’ -, adotada nos Estados Unidos desde 1914 para os Tribunais Federais, e, nos Estados, por imperativo constitucional, desde 1961, e que teve sua maior repercussão no caso ‘Silverthorne Lumber Co. v. United States, 251 US 385 (1920)’, quando a Corte decidiu que o Estado não podia intimar uma pessoa a entregar documentos cuja existência fora descoberta pela polícia por meio de uma prisão ilegal. Mediante tortura (conduta ilícita), obtém-se informação da localização da ‘res furtiva’, que é apreendida regularmente. Mediante escuta telefônica (prova ilícita), obtém-se informação do lugar em que se encontra o entorpecente, que, a seguir, é apreendido com todas as formalidades legais... Assim, a obtenção ilícita daquela informação se projeta sobre a diligência de busca e apreensão, aparentemente legal, mareando-a, nela transfundindo o estigma da ilicitude penal. Nisso consiste a doutrina do ‘fruto da árvore envenenada’. Os Tribunais norte-americanos têm se valido dessa doutrina ‘com a finalidade de reafirmar os fundamentos éticos e dissuasivos da ilegalidade estatal em que se baseia aquela regra’. Aliás, a Suprema Corte tem sufragado a tese da inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, ou da doutrina denominada ‘fruits of the poisonous tree’. No HC 69.912-RS, o Ministro Sepúlveda Pertence, como Relator, observou: ‘Vedar que se possa trazer ao processo a própria ‘degravação’ das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que sem tais informações não colheria, evidentemente, é estimular, e não reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina de conversas privadas... E finalizando: ou se leva às últimas conseqüências a garantia constitucional ou ela será facilmente contornada pelos frutos da informação ilicitamente obtida’ (‘Informativo STF’ n. 36, de 21-6-1996). No HC 73.351/SP, o STF, concedendo o ‘writ’, observou que ‘a prova ilícita contaminou as provas obtidas a partir dela. A apreensão dos 80 quilos de cocaína só foi possível em virtude de interceptação telefônica...’ (‘Informativo STF’ n. 30, de 15-5-1996).
E a sanção processual para as provas inadmissíveis é a sua imprestabilidade ou, na linguagem do novo ‘Codice de Procedura Penale’, art. 191, suanon utilizzabilità’ (art. 191, 1: ‘Le prove acquisite in violazione dei divieti stabiliti dalla legge non possono essere utilizzate. 2. L’inutilizzabilità è rilevabile anche di ufficio in ogni stato e grado del procedimento’).
Ninguém pode ser acusado ou julgado com base em provas ilícitas. Ressalte-se que a exigência do ‘due process of law’ destina-se a garantir a pessoa contra a ação arbitrária do Estado e a colocá-la sob a imediata proteção das leis.
Aliás o Pretório Excelso já decidiu que, ‘...os meios de prova ilícitos não podem servir de sustentação ao inquérito ou à ação penal...’ (RTJ, 122/47)
E se, por acaso, em decorrência de prova obtida ilicitamente, por exemplo, um depoimento conseguido mediante tortura, a Polícia se dirige ao verdadeiro culpado, e este, sem a menor resistência, confessa o crime? E se durante busca domiciliar realizada sem mandado judicial, uma empregada da casa, sem qualquer atitude agressiva da Policia, delata o criminoso ou indica o lugar onde se encontra o entorpecente procurado? E, uma vez procurado o criminoso, este, sem qualquer coação, reconhece a sua culpa ou, no outro exemplo, indo a Polícia ao local onde o objeto procurado deveria estar, é encontrado e apreendido? ‘Quid inde’? Será que a ilegalidade inicial (tortura da testemunha, busca domiciliar ao arrepio da lei), se projeta sobre outras provas obtidas a partir daquela ilegalidade ou em decorrência dela? Dir-se-á que a confissão do criminoso e o depoimento da testemunha foram prestados com inteira liberdade, e, por isso mesmo, constituíram fontes independentes. Mas, se houver outras provas consideradas autônomas, isto é, colhidas sem necessidade dos elementos informativos, revelados pela prova ilícita, não haverá invalidade do processo. Disse-o o STF no HC 76.231-RJ (‘Informativo’, STF n. 115).” (grifei)

Não se desconhece, porém, que, tratando-se de elementos probatórios absolutamente desvinculados da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo qualquer relação de dependência, revelando-se, ao contrário, impregnados de plena autonomia, não se aplica, quanto a eles, a doutrina da ilicitude por derivação, por se cuidar, na espécie, de evidência fundada em uma fonte autônoma de conhecimento (“an independent source”), como o demonstram julgados de outras Cortes judiciárias (HC 40.089-AgR/MG, Rel. Min. FELIX FISCHER - HC 43.944/SP, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA - HC 60.584/RN, Rel. Min. GILSON DIPP, v.g.), inclusive decisões emanadas desta Suprema Corte (HC 74.116/SP, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA - HC 75.497/SP, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - RHC 85.254/RJ, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RHC 85.286/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA):

HABEAS-CORPUS’ SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO NA FASE INQUISITORIAL. INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADES. TEORIA DA ÁRVORE DOS FRUTOS ENVENENADOS. CONTAMINAÇÃO DAS PROVAS SUBSEQÜENTES. INOCORRÊNCIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PROVA AUTÔNOMA.
1. Eventuais vícios do inquérito policial não contaminam a ação penal. O reconhecimento fotográfico, procedido na fase inquisitorial, em desconformidade com o artigo 226, I, do Código de Processo Penal, não tem a virtude de contaminar o acervo probatório coligido na fase judicial, sob o crivo do contraditório. Inaplicabilidade da teoria da árvore dos frutos envenenados (‘fruits of the poisonous tree’). Sentença condenatória embasada em provas autônomas produzidas em juízo.
2. Pretensão de reexame da matéria fático-probatória. Inviabilidade do ‘writ’.
Ordem denegada.” (RTJ 191/598, Rel. Min. EROS GRAU - grifei)

(...) - Se, no entanto, o órgão da persecução penal demonstrar que obteve, legitimamente, novos elementos de informação a partir de uma fonte autônoma de prova - que não guarde qualquer relação de dependência nem decorra da prova originariamente ilícita, com esta não mantendo vinculação causal -, tais dados probatórios revelar-se-ão plenamente admissíveis, porque não contaminados pela mácula da ilicitude originária.

- A QUESTÃO DA FONTE AUTÔNOMA DE PROVA (‘AN INDEPENDENT SOURCE’) E A SUA DESVINCULAÇÃO CAUSAL DA PROVA ILICITAMENTE OBTIDA – DOUTRINA - PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - JURISPRUDÊNCIA COMPARADA (A EXPERIÊNCIA DA SUPREMA CORTE AMERICANA): CASOS ‘SILVERTHORNE LUMBER CO. V. UNITED STATES (1920); SEGURA V. UNITED STATES (1984); NIX V. WILLIAMS (1984); MURRAY V. UNITED STATES (1988)’, v.g. (RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Em suma: a Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”, como reiteradamente tem proclamado e advertido — o Supremo Tribunal Federal (HC 82.788/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
O eminente Ministro MARCO AURÉLIO bem demonstrou, em seu douto voto, a existência, no caso, de prova tisnada pelo vício da ilicitude, a impedir, em conseqüência, no que se refere ao denunciado [...]**, a utilização, contra ele (ou contra qualquer outro acusado), dos elementos de informação inconstitucionalmente obtidos.
Com estas razões, Senhor Presidente, peço vênia para acompanhar o voto do Ministro MARCO AURÉLIO e determinar, em conseqüência, a exclusão e o desentranhamento, por ilícita, da prova penal resultante do procedimento probatório ora questionado.
É o meu voto.

*acórdão publicado no DJE de 26.3.2010
**nome suprimido pelo Informativo

Apropriação Indébita x Ilícito Civil - STF

AP N. 480-PR
RED. P/ O ACÓRDÃO: MIN. CEZAR PELUSO         
EMENTA: AÇÃO PENAL. Denúncia. Imputação do crime de apropriação indébita. Art. 168, § 1º, inc. I, do CP. Não devolução de veículo objeto de contrato de compra e venda, depois da desconstituição amigável deste. Fato absolutamente atípico. Caso de mero inadimplemento de obrigação de restituir, oriunda do desfazimento do negócio jurídico. Simples ilícito civil. Inexistência de obrigação original de devolver coisa alheia móvel e, sobretudo, de depósito necessário, inconcebível na hipótese. Caso de posse contratual. Inépcia caracterizada. Absolvição do réu. Votos vencidos. Não pratica apropriação indébita, segundo o tipo do art. 168, § 1º, inc. I, do Código Penal, o ex-comprador que, depois de amigavelmente desfeito contrato de compra e venda de veículo, deixa de o restituir incontinenti ao ex-vendedor.
*noticiado no Informativo 578

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Fundamentos do decreto de prisão sem relação com o acusado são inválidos - STJ

Fonte: Notícias do STJ
 
28/09/2010 - 11h12
 
DECISÃO
Fundamentos do decreto de prisão sem relação com o acusado são inválidos
Uma mulher presa no Piauí sob a acusação de fazer parte de uma quadrilha de tráfico de drogas teve habeas corpus concedido pelo desembargador convocado Celso Limongi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele constatou que os argumentos que fundamentaram a prisão preventiva de Maria Araújo Miranda são genéricos e “sem nenhuma relação concreta com a paciente”. Para o magistrado, deve existir base objetiva e atual entre o direito de liberdade e a comprovação do perigo de a acusada ficar em liberdade, o que, neste caso, não ficou demonstrado.

Inconformada com a prisão cautelar, a defesa de Maria Miranda recorreu ao STJ, alegando constrangimento ilegal por falta de justa causa. O advogado sustentou que ela não praticou o crime que lhe foi imputado e, além disso, é primária, sem antecedentes criminais, com profissão lícita e residente no distrito da culpa.

Ao analisar o pedido, o desembargador Celso Limongi afirmou: “A despeito das repetidas referências no processo da existência de uma organização criminosa, da busca que se fez no estabelecimento comercial da ré, não se aprendeu senão telefones celulares, uma motocicleta, papéis, documentos, um facão e nenhum grama de entorpecente, de sorte que, também por esta evidência, não se pode inferir extrema ou intensa nocividade social da conduta que é imputada à paciente”.

O desembargador convocado salientou que Maria Miranda está colaborando com a Justiça e que não foram encontrados elementos fortes o bastante para sustentar a prisão cautelar. “A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que afirmações genéricas, repetições do texto legal e presunções sem elo com a realidade não servem à decretação da prisão preventiva”, destacou.

Como a prisão preventiva é medida excepcional e deve ser decretada somente quando estiver devidamente baseada em requisitos legais, conforme o princípio constitucional da presunção de inocência ou da não culpabilidade, o desembargador Celso Limongi concedeu o habeas corpus. A acusada vai ficar em liberdade até o trânsito em julgado da ação penal, que tramita na Comarca de Parnaíba, mediante o compromisso de comparecer a todos os atos do processo.

De acordo com a denúncia do Ministério Público do Piauí, Maria Miranda, conhecida como “Maria Cobra”, supostamente integra uma organização criminosa com diversos níveis de hierarquia e de distribuição de tarefas e lucro obtidos com as drogas, agindo em vários municípios piauienses e também do Ceará. A prisão preventiva da acusada foi decretada com base no risco concreto de fuga, assim como na garantia da ordem pública, uma vez que, segundo informações contidas no processo, haveria fortes evidências de que o tráfico de entorpecentes seria o meio de vida de alguns integrantes da família da ré.

Coordenadoria de Editoria e Imprensa

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Compreende-se no direito de defesa estabelecerem os co-réus estratégias de defesa

STF - HC 86.864-9/SP

... "Prisão preventiva decretada por conveniência da instrução criminal. Conversa, pelo telefone, do paciente com outro co-réu, conversa essa interceptada com autorização judicial. Compreende-se no direito de defesa estabelecerem os co-réus estratégias de defesa. No caso, não há falar em aliciamento e constrangimento de testemunhas."...

Crime Culposo - Denúncia Inepta - TJMG

TJMG - HC 0182674-60.2010.8.13.0000 - 4ª Câmara Criminal

HABEAS CORPUS - LESÃO CORPORAL CULPOSA DE TRÂNSITO - DENÚNCIA INEPTA - ORDEM CONCEDIDA. I - Para possibilitar o exercício do direito de defesa, a denúncia deve descrever, ainda que minimamente, a conduta dolosa ou culposa imputada ao agente, sendo inepta a exordial acusatória que não cumpre este requisito (art. 41 do CPP). II - Ordem concedida. V.V.P. Anula-se o processo a partir da decisão que recebeu a denúncia, ficando a cargo do Ministério Público, querendo e achando oportuno, oferecer outra em substituição àquela julgada inepta na oportunidade.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Apresentação do Prof. Gilmar (Você está defecando pela boca)

Prof. Gilmar dá esporro em aluno (Bando de badernista)

CÓPIA. MEIO ELETRÔNICO. IDONEIDADE. SUSPENSÃO. PRAZOS.

INFORMATIVO STJ Nº 0447
CÓPIA. MEIO ELETRÔNICO. IDONEIDADE. SUSPENSÃO. PRAZOS.
A Corte Especial, ao julgar o agravo de instrumento remetido pela Quarta Turma deste Superior Tribunal, entendeu que, para comprovar que os prazos processuais estavam suspensos no tribunal de origem, as cópias obtidas por meio de sítio eletrônico do Poder Judiciário relativas à mencionada suspensão são idôneas e podem ser admitidas como documentos hábeis para demonstrar a tempestividade do recurso, desde que contenham a identificação de sua procedência, ou seja, o endereço eletrônico de origem, a data de reprodução no rodapé da página cuja veracidade seja facilmente verificável e sejam juntadas no instante da interposição do recurso especial, podendo a parte contrária impugná-las fundamentadamente. Assim, a Corte Especial deu provimento ao agravo. AgRg no Ag 1.251.998-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 15/9/2010.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Quebra da Imparcialidade Objetiva do Juiz

11/11/2008
SEGUNDA TURMA
HABEAS CORPUS 94.641-1 BAHIA
V O T O – V I S T A
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO: 1. Trata-se de habeas corpus em que figura como paciente OSMAR VIEIRA BARBOSA, condenado, em primeiro grau, à pena de 9 (nove) anos, 2 (dois) meses e 25 (vinte e cinco) dias de reclusão, majorada, em recurso, para 10 (dez) anos e 6 (seis) meses, por infração ao art. 214, cc. arts. 224, a, e 225, II, na forma do art. 71, todos do Código Penal.
Denegada ordem no Superior Tribunal de Justiça, foi impetrado este habeas corpus, em que se alega em síntese: a) nulidade do processo penal de primeiro grau, por impedimento do juiz, que teria atuado como autoridade policial na fase investigatória de paternidade; b) ilicitude das provas nas quais se baseou a condenação (“declarações da vítima no procedimento de averiguação de paternidade e meros testemunhos ‘por ouvir dizer”); c) nulidade do acórdão do STJ por violação ao princípio da isonomia, pois teria decidido de maneira diversa em casos semelhantes.
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo conhecimento parcial do writ, mas pela denegação da ordem.
2. Na sessão do dia 14 de outubro de 2008, a Relatora, Min. ELLEN GRACIE, não conheceu do pedido quanto à primeira alegação, uma vez não analisada no acórdão atacado, e, quanto às demais, indeferiu a ordem por exigir revolvimento de matéria de fato.
O Min. JOAQUIM BARBOSA concedeu a ordem de ofício, com fundamento na primeira alegação do impetrante, pois o magistrado sentenciante teria atuado como se fora autoridade policial, em virtude de, no procedimento preliminar de investigação de paternidade, em que foram apurados os fatos, ter ouvido diversas testemunhas antes de encaminhar os autos ao Ministério Público para a propositura de ação penal.
Pedi vista.
3. Data venia da douta Min. Relatora, acompanho a solução do eminente Min. JOAQUIM BARBOSA.
Abstraídos os demais fundamentos do pedido, estou em que se patenteia, no caso, quebra da chamada imparcialidade objetiva, de que deve, como cláusula elementar do princípio constitucional do justo processo da lei (due process of law), revestir-se, na situação de cada causa, o magistrado competente para decidi-la. E, por implicar nulidade absoluta, o vício processual, que é grave, pode pronunciado, até de ofício, a qualquer tempo, prescindindo, sobre a questão, de juízo anterior dos órgãos jurisdicionais que antecederam a esta Corte no julgamento do caso, donde não haver espaço para cogitar-se de supressão de instâncias.
Deveras, pouco se dá que as provas ou elementos indiciários que deram base à denúncia e, no processo subseqüente, à própria sentença penal condenatória, não tenham sido colhidos em inquérito policial, mas no curso de procedimento oficioso de investigação de paternidade de que trata o art. 2º da Lei federal nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992.
Coisa indiscutível é que, tendo-os coligido pessoalmente nessa sede, a qual guarda evidente caráter preliminar em relação às causas que daí podiam irradiar-se, o mesmo juiz conduziu, ao depois, todo o processo da ação penal fundada nos mesmíssimos fatos e, nela, proferiu sentença condenatória. Funcionou, assim, na produção das provas e cognição dos fatos, nas duas fases processuais em que estes se desdobraram como objeto de apuração jurisdicional, ou seja, na investigação oficiosa preliminar de paternidade e no processo e julgamento da ação penal conseqüente.
Pensa a jurisprudência dominante que, à luz do disposto no art. 252 do Código de Processo Penal, não esteja o juiz que tenha atuado em outro processo a respeito da matéria, impedido de exercer o ofício, porque seriam taxativas as hipóteses ali previstas, das quais a do inc. III diria respeito a atuação em fases diversas do mesmo processo:
“‘No tocante a alegação de nulidade do julgamento da apelação por estar impedido Juiz que dele participou apesar de ter exercido jurisdição em ação civil pública movida contra os réus pelas fraudes ocorridas na LBA, e ela improcedente, porquanto as causas, enumeradas no artigo 252 do Código de Processo Penal, que dão margem a impedimento, dizem respeito ao mesmo processo e não, como ocorre no caso, a outro. O inciso III desse artigo se refere ao impedimento de Juiz que, no mesmo processo, mas em outra instância, se houver pronunciado, de fato ou de direito, sobre a questão. Ademais, as causas de impedimento são taxativas e as normas que as enumeram em "numerus clausus" são de direito estrito. - Inexistência, no caso, de "reformatio in peius". Ocorrencia de "emendatio libelli" que pode ser feita em segundo grau de jurisdição. Precedentes do S.T.F. - Tendo a denuncia imputado ao ora paciente crimes funcionais e não funcionais, não se aplica o disposto no artigo 514 do C.P.P., como entendeu esta Corte no julgamento do HC 50664 (RTJ 66/365 e segs.), ao salientar: "Bastante e que a denuncia classifique que a conduta do réu em norma que defina crime não funcional, embora nela inclua também o de responsabilidade, para se afastar a medida prevista no art. 514 do C.Pr. Penal". De outra parte, a omissão dessa formalidade só acarreta, segundo a jurisprudência desta Corte, nulidade relativa, que não se declara quando não alegada - como não o foi no caso - no momento oportuno, nem quando não há a demonstração de prejuizo para o réu". Ademais, segundo o relatorio da sentença de primeiro grau, - e o ora paciente não demonstrou o contrario -, foi ele notificado para apresentar resposta nos termos do artigo 514 do C.P.P. e a apresentou. "Habeas corpus" indeferido”. (HC n.º 73099, Rel Min. MOREIRA ALVES, DJ de 17.05.1996)
Não me parece, data venia, seja esta a leitura mais acertada, sobretudo perante os princípios e as regras constitucionais que a devem iluminar, segundo as incontroversas circunstâncias históricas do caso, em que o juiz, ao conduzir e julgar a ação penal, não conseguiu — nem poderia fazê-lo, dada a natural limitação do mecanismo de autocontrole sobre motivações psíquicas subterrâneas — despir-se da irreprimível influência das impressões pessoais gravadas já na instrução sumária do procedimento de investigação de paternidade.
É o que se vê claro ao conteúdo das suas decisões, em especial no recebimento da denúncia e na decretação da prisão preventiva do ora paciente, em ambas as quais evidenciou estar fortemente influenciado, na formação e justificação do convencimento, pelas percepções adquiridas na investigação preliminar (fls. 21-24 do apenso). Da mesma forma, mostra-se a sentença condenatória repleta de remissões aos atos dessa investigação prévia, além de opiniões já anteriormente concebidas e expostas sobre os fatos. Neste passo, por exemplo, chega a mencionar ter percebido que, durante sua inquirição no procedimento preliminar, a vítima estava “muito constrangida e nervosa” (fl. 40 do apenso). E advirta-se que a vítima já não foi ouvida na instrução criminal.
Caracteriza-se, portanto, hipótese exemplar de ruptura da situação de imparcialidade objetiva, cuja falta incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida, em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos o torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional.[1] Tal qualidade, carente no caso, diz-se objetiva, porque não provém de ausência de vínculos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados jurídicos na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir. Como é óbvio, sua perda significa falta da isenção inerente ao exercício legítimo da função jurisdicional.
O ordenamento jurídico italiano prevê hipótese que, mutatis mutandis, pode dizer-se substancialmente idêntica à da espécie, ao estipular, no art. 34, comma 2-bis, cc. comma 2-ter, do Código de Processo Penal, situação de incompatibilidade,[2] equivalente à perda da imparcialidade objetiva, sempre que o juiz haja desempenhado funções no procedimento de indagini preliminari, antecipando juízo sobre a culpabilidade do acusado.[3]
A respeito nota a doutrina:
“A imparcialidade do juiz, mais do que simples atributo da função jurisdicional, é vista hodiernamente como seu caráter essencial, sendo o princípio do juiz natural erigido em núcleo essencial do exercício da função. Mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem o juiz natural, não há função jurisdicional possível.”[4]
Não me parece, no entanto, que o requisito da imparcialidade objetiva derive do princípio do juiz natural. Antes, este é que se fundamenta na imparcialidade da jurisdição, enquanto sua ratio última, como já o demonstrou a clássica monografia de TAORMINA, para quem
“Che il processo sia esclusivamente giuridizione significa che in ogni momento deve conformarsi all’essenza del giurisdire che consiste nella imparziale od equidistante considerazione degli interessi delle parti... Ormai sappiamo che la causa di questa equidistante considerazione degli interessi delle parti o, come anche si dice, di questa par condicio di esse nel processo non può essere che il riflesso dell’esercizio della giurisdizione consistente nella imparzialità ed è dunque chiaro che la processualità del rapporto consiste nella giurisdizionalità”.[5]
A imparcialidade da jurisdição é exigência primária do princípio do devido processo legal, entendido como justo processo da lei,[6] na medida em que não pode haver processo que, conquanto legal ou oriundo da lei, como deve ser, seja também justo — como postula a Constituição da República —, sem o caráter imparcial da jurisdição. Não há, deveras, como conceber-se processo jurisdicional — que, como categoria jurídica, tem por pressuposto de validez absoluta a concreta realização da promessa constitucional[7] de ser justo ou devido por justiça (due process) —,[8] sem o predicado da imparcialidade da jurisdição.[9]
A doutrina brasileira tem-se preocupado, hoje, embora sem muita repercussão prática, com esse aspecto relevantíssimo das condições subjetivas de capacidade para exercício da jurisdição, acentuando, à vista da experiência jurisprudencial e do ordenamento jurídico europeus, em particular do italiano, a presunção absoluta de parcialidade incidente sobre a pessoa do juiz, em certas situações típicas capazes de produzir e revelar, segundo a experiência (id quod plerumque accidit), perda da originalidade da cognição, como a hipótese paradigmátiva de haver tido, em processo ou procedimento anterior, contato não superficial com o objeto da causa:
“Enfrentando esses resquícios inquisitórios, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), especialmente nos casos Piersack, de 01/10/82, e de Cubber, de 26/10/84, consagrou o entendimento de que o juiz com poderes investigatórios é incompativel com a função de julgador. Ou seja, se o juiz lançou mão de seu poder investigatório na fase pré-processual, não poderá, na fase processual, ser o julgador. É uma violação do direito ao juiz imparcial consagrado no art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950. Segundo o o TEDH, a contaminação resultante dos pré-juízos conduzem à falta de imparcialidade subjetiva ou objetiva.
Desde o caso Piersack, de 1982, entende-se que a subjetiva alude à convicção pessoal do juiz concreto, que conhece de um determinado assunto e, deste modo, a sua falta de pré-juízos.
Já a imparcialidade objetiva diz respeito a se tal juiz se encontra em uma situação dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer dúvida razoável acerca de sua imparcialidade. Em ambos casos, a parcialidade cria a desconfiança e a incerteza na comunidade e nas suas instituições. Não basta estar subjetivamente protegido; é importante que se encontre em uma situação jurídica objetivamente imparcial (é a visibilidade).
Seguindo essas decisões do TEDH, aduziu o Tribunal Constitucional espanhol (STC 145/88), entre outros fundamentos, que o juiz-instrutor não poderia julgar, pois violava a chamada imparcialidade objetiva, aquela que deriva não da relação do juiz com as partes, mas sim de sua relação com o objeto do processo.
Ainda que a investigação preliminar suponha uma investigação objetiva sobre o fato (consignar e apreciar as circunstâncias tanto adversas como favoráveis ao sujeito passivo), o contato direto com o sujeito passivo e com os fatos e dados pode provocar no ânimo do juiz-instrutor uma série de pré-juízos e impressões a favor ou em contra do imputado, influenciando no momento de sentenciar.
Destaca o Tribunal uma fundada preocupação com a aparência de imparcialidade que o julgador deve transmitir para os submetidos à administração da justiça, pois, ainda que não se produza o pré-juízo, é difícil evitar a impressão de que o juiz (instrutor) não julga com pleno alheamento. Isso afeta negativamente a confiança que os Tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar nos justiçáveis, especialmente na esfera penal.
Desta forma, atualmente, existe uma presunção absoluta de parcialidade do juiz-instrutor, que lhe impede julgar o processo que tenha instruído.
Outra decisão sumamente relevante, que vai marcar uma nova era no processo penal europeu, foi proferida pelo TEDH no caso "Castillo-Algar contra España" (STEDH de 28/10/98), na qual declarou vulnerado o direito a um juiz imparcial o fato de dois magistrados, que haviam formado parte de uma Sala que denegou um recurso interposto na fase pré-processual, também terem participado do julgamento.
Esta decisão do TEDH levará a outras de caráter interno, nos respectivos Tribunais Constitucionais dos países europeus, e sem dúvida acarretará uma nova alteração legislativa. Frise-se que esses dois magistrados não atuaram como juizes de instrução, mas apenas haviam participado do julgamento de um recurso interposto contra uma decisão interlocutória tomada no curso da instrução preliminar pelo juiz-instrutor. Isso bastou para que o TEDH entendesse comprometida a imparcialidade deles para julgar em grau recursal a apelação contra a sentença.
Imaginem o que diria o TEDH diante do sistema brasileiro, em que muitas vezes os integrantes de uma Câmara Criminal irão julgar do primeiro habeas corpus - interposto contra a prisão preventiva -, passando pela apelação e chegando até a decisão sobre os agravos interpostos contra os incidentes da execução penal...
Mas não apenas os espanhóis enfrentaram esse problema. Seguindo a normativa européia ditada pelo TEDH, o art. 34 do Códice de Procedura Penal prevê, entre outros casos, a incompatibilidade do juiz que ditou a resolução de conclusão da audiência preliminar para atuar no processo e sentenciar. Posteriormente, a Corte Constituzionale, através de diversas decisões, declarou a inconstitucionalidade por omissão deste dispositivo legal, por não haver previsto outros casos de incompatibilidade com relação a anterior atuação do juiz na indagine preliminare.
Em síntese, consagrou o princípio anteriormente explicado, de que o juiz que atua na investigação preliminar está prevento e não pode presidir o processo, ainda que somente tenha decretado uma prisão cautelar (Sentença da Corte Constituzionale n° 432, de 15 de setembro de 1995).” [10]
Conquanto nem todas as conclusões deste primoroso estudo crítico nos pareçam ajustáveis sic et simpliciter à nossa ordem jurídica, é fora de dúvida que, mediante interpretação lata do art. 252, III, do Código de Processo Penal, mas conforme com o princípio do justo processo da lei (art. 5º, LIV, da Constituição da República), não pode, à míngua de imparcialidade objetiva e por conseqüente impedimento, exercer jurisdição em causa penal o juiz que, em procedimento preliminar e oficioso de investigação de paternidade, se tenha pronunciado, de fato ou de direito, sobre a questão, como sucedeu no caso, onde aquela garantia não foi respeitada.
A regra processual penal não pode valer apenas para hipótese da chamada progressão vertical do processo, a qual exclui atuação de juiz que haja atuado em outro grau de jurisdição da mesma causa, pois as razões que sustentam tal exclusão, de todo em todo se aplicam ao fenômeno do desenvolvimento processual horizontal, proibindo, diante de igual presunção de pré-juízo, exerça jurisdição, no processo principal, o juiz que tenha recolhido provas em procedimento preliminar sobre os fatos.[11]
4. Com essas breves considerações, peço vênia à eminente Min. Relatora, para, acompanhando a divergência, conceder de ofício a ordem de habeas corpus e, em conseqüência, anular o processo desde o recebimento da denúncia.


[1] Incompatibilidade (incompatibilità) é, aliás, a tradicional denominação que a lei e a doutrina italianas reservam às posições pessoais do magistrado que, a respeito da matéria do juízo, podem comprometer-lhe a imparcialidade pressuposta ao exercício legítimo da jurisdição, como advertia CARNELUTTI (Principi del processo penale. Napoli: Morano, 1960. p. 73, nº 55.)