segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Réu Preso - Inquirição de Testemunhas - Juízo Deprecado - Necessidade de Requisição do Acusado - Ausência - Nulidade Absoluta (Transcrições) - HC 95106/RJ*

Réu Preso - Inquirição de Testemunhas - Juízo Deprecado - Necessidade de Requisição do Acusado - Ausência - Nulidade Absoluta (Transcrições)

HC 95106/RJ*

Relator: Min. Gilmar Mendes

V O T O: O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Entendo, Senhor Presidente, que a ausência de requisição do réu preso, com a conseqüente (e injusta) frustração do seu direito de comparecimento e de presença na audiência de inquirição de testemunhas (ainda que seja uma só), realizada no juízo deprecado, configura hipótese de nulidade processual absoluta.
Tenho para mim que o acórdão emanado do E. Superior Tribunal de Justiça, objeto da presente impetração, está em direto confronto com a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria.
 Com efeito, esta colenda Segunda Turma, ao julgar o HC 86.634/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, proferiu decisão na qual deixou claramente acentuado, a propósito do tema em análise, que o Estado tem o dever de assegurar, ao réu preso, o exercício pleno do direito de defesa, havendo salientado, então, em referido julgamento, que se acha incluído, nessa prerrogativa essencial, o direito de presenciar a inquirição de testemunhas, ainda mais quando arroladas pelo Ministério Público:

“‘HABEAS CORPUS’ - INSTRUÇÃO PROCESSUAL - RÉU PRESO - PRETENDIDO COMPARECIMENTO À AUDIÊNCIA PENAL - PLEITO RECUSADO - REQUISIÇÃO JUDICIAL NEGADA SOB FUNDAMENTO DA PERICULOSIDADE DO ACUSADO - INADMISSIBILIDADE - A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PLENITUDE DE DEFESA: UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DA CLÁUSULA DO ‘DUE PROCESS OF LAW’ - CARÁTER GLOBAL E ABRANGENTE DA FUNÇÃO DEFENSIVA: DEFESA TÉCNICA E AUTODEFESA (DIREITO DE AUDIÊNCIA E DIREITO DE PRESENÇA) - PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS/ONU (ARTIGO 14, N. 3, ‘D’) E CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS/OEA (ARTIGO 8º, § 2º, ‘D’ E ‘F’) - DEVER DO ESTADO DE ASSEGURAR, AO RÉU PRESO, O EXERCÍCIO DESSA PRERROGATIVA ESSENCIAL, ESPECIALMENTE A DE COMPARECER À AUDIÊNCIA DE INQUIRIÇÃO DAS TESTEMUNHAS, AINDA MAIS QUANDO ARROLADAS PELO MINISTÉRIO PÚBLICO - RAZÕES DE CONVENIÊNCIA ADMINISTRATIVA OU GOVERNAMENTAL NÃO PODEM LEGITIMAR O DESRESPEITO NEM COMPROMETER A EFICÁCIA E A OBSERVÂNCIA DESSA FRANQUIA CONSTITUCIONAL - NULIDADE PROCESSUAL ABSOLUTA - AFASTAMENTO, EM CARÁTER EXCEPCIONAL, NO CASO CONCRETO, DA INCIDÊNCIA DA SÚMULA 691/STF - ‘HABEAS CORPUSCONCEDIDO DE OFÍCIO.
- O acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório. São irrelevantes, para esse efeito, as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder à remoção de acusados presos a outros pontos do Estado ou do País, eis que razões de mera conveniência administrativa não têm - nem podem ter - precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que determina a Constituição. Doutrina. Jurisprudência.
- O direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do ‘due process of law’ e que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/ONU (Artigo 14, n. 3, ‘d’) e Convenção Americana de Direitos Humanos/OEA (Artigo 8º, § 2º, ‘d’ e ‘f’).
- Essa prerrogativa processual reveste-se de caráter fundamental, pois compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados. Precedentes.”
(RTJ 202/1146-1147, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Desejo assinalar, neste ponto, que os fundamentos que dão suporte a esta impetração revestem-se de inquestionável importância jurídica, pois o caso em exame põe em evidência controvérsia consistente no reconhecimento de que assiste, a qualquer réu (notadamente ao réu preso), sob pena de nulidade absoluta, o direito de comparecer, mediante requisição do Poder Judiciário, à audiência de instrução processual em que serão inquiridas testemunhas em geral, ainda mais se se tratar de testemunhas arroladas pelo Ministério Público, tal como esta colenda Segunda Turma decidiu em recente julgamento que versou idêntica matéria (HC 93.503/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Tenho sustentado, nesta Suprema Corte, Senhor Presidente, com apoio em autorizado magistério doutrinário (FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Processo Penal”, vol. 3/136, 10ª ed., 1987, Saraiva; FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal - O Direito de Defesa”, p. 240, 1986, Forense; JAQUES DE CAMARGO PENTEADO, “Acusação, Defesa e Julgamento”, p. 261/262, item n. 17, e p. 276, item n. 18.3, 2001, Millennium; ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito Processual”, p. 10, item n. 7, 1990, Forense Universitária; ANTONIO SCARANCE FERNANDES, “Processo Penal Constitucional”, p. 280/281, item n. 26.10, 3ª ed., 2003, RT; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 189, item n. 7.2, 2ª ed., 2004, RT; ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, “Direito à Prova no Processo Penal”, p. 154/155, item n. 9, 1997, RT; VICENTE GRECO FILHO, “Tutela Constitucional das Liberdades”, p. 110, item n. 5, 1989, Saraiva; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, “Direito Processual Penal”, vol. 1/431-   -432, item n. 3, 1974, Coimbra Editora, v.g.), que o acusado, embora preso, tem o direito de comparecer, de assistir e de presenciar, sob pena de nulidade absoluta, os atos processuais, notadamente aqueles que se produzem na fase de instrução do processo penal, que se realiza, sempre, sob a égide do contraditório, sendo irrelevantes, para esse efeito, “(...) as alegações do Poder Público concernentes à dificuldade ou inconveniência de proceder à remoção de acusados presos a outros pontos do Estado ou do País”, eis que “(...) alegações de mera conveniência administrativa não têm - nem podem ter - precedência sobre as inafastáveis exigências de cumprimento e respeito ao que determina a Constituição” (RTJ 142/477-478, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Esse entendimento tem por suporte o reconhecimento - fundado na natureza dialógica do processo penal acusatório, impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático (JOSÉ FREDERICO MARQUES, “O Processo Penal na Atualidade”, “in” “Processo Penal e Constituição Federal”, p. 13/20, 1993, APAMAGIS/Ed. Acadêmica) - de que o direito de audiência, de um lado, e o direito de presença do réu, de outro, esteja ele preso ou não, traduzem prerrogativas jurídicas essenciais que derivam da garantia constitucional do “due process of lawe que asseguram, por isso mesmo, ao acusado, o direito de comparecer aos atos processuais a serem realizados perante o juízo processante, ainda que situado este em local diverso daquele em que esteja custodiado o réu.
Vale referir, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, o douto magistério de ROGÉRIO SCHIETTI MACHADO CRUZ (“Garantias Processuais nos Recursos Criminais”, p. 132/133, item n. 5.1, 2002, Atlas):

A possibilidade de que o próprio acusado intervenha, direta e pessoalmente, na realização dos atos processuais, constitui, assim, a autodefesa (...).
Saliente-se que a autodefesa não se resume à participação do acusado no interrogatório judicial, mas há de estender-se a todos os atos de que o imputado participe. (...).
Na verdade, desdobra-se a autodefesa em ‘direito de audiência’ e em ‘direito de presença’, é dizer, tem o acusado o direito de ser ouvido e falar durante os atos processuais (...), bem assim o direito de assistir à realização dos atos processuais, sendo dever do Estado facilitar seu exercício, máxime quando o imputado se encontre preso, impossibilitado de livremente deslocar-se ao fórum.” (grifei)

Incensurável, por isso mesmo, sob tal perspectiva, o julgamento desta Suprema Corte, de que foi Relator o eminente Ministro LEITÃO DE ABREU, consubstanciado em acórdão que está assim ementado (RTJ 79/110):

Habeas Corpus. Nulidade processual. O direito de estar presente à instrução criminal, conferido ao réu, assenta na cláusula constitucional que garante ao acusado ampla defesa. A violação desse direito importa nulidade absoluta, e não simplesmente relativa, do processo.
...................................................
Nulidade do processo a partir dessa audiência.
Pedido deferido.” (grifei)

Cumpre destacar, nesse mesmo sentido, inúmeras outras decisões emanadas deste Supremo Tribunal Federal que consagraram esse entendimento (RTJ 64/332 - RTJ 66/72 - RTJ 70/69 - RTJ 80/37 – RTJ 80/703), cabendo registrar, por relevante, julgamento em que esta Suprema Corte reconheceu essencial a presença do réu preso na audiência de inquirição de testemunhas arroladas pelo órgão da acusação estatal, sob pena de ofensa à garantia constitucional da plenitude de defesa:

“‘Habeas corpus’. Nulidade processual. O direito de estar presente à instrução criminal, conferido ao réu e seu defensor, assenta no princípio do contraditório. Ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, através da presença do acusado aos atos processuais. (...).”
(RTJ 46/653, Rel. Min. DJACI FALCÃO - grifei)

Essa percepção do tema em exame - que reconhece a ocorrência de nulidade absoluta na preterição de formalidade tão essencial ao exercício do direito de defesa - reflete-se no magistério jurisprudencial de outros Tribunais (RT 522/369 – RT 537/337 - RT 562/346 - RT 568/287 - RT 569/309 - RT 718/415):

“O direito conferido ao réu de estar presente à instrução criminal assenta-se na cláusula constitucional que garante ao acusado ampla defesa. A violação desse direito importa nulidade absoluta, e não apenas relativa, do processo.”
(RT 607/306, Rel. Des. BAPTISTA GARCIA - grifei)

Não constitui demasia assinalar, neste ponto, analisada a função defensiva sob uma perspectiva global, que o direito de presença do réu na audiência de instrução penal, especialmente quando preso, além de traduzir expressão concreta do direito de defesa (mais especificamente da prerrogativa de autodefesa), também encontra suporte legitimador em convenções internacionais que proclamam a essencialidade dessa franquia processual, que compõe o próprio estatuto constitucional do direito de defesa, enquanto complexo de princípios e de normas que amparam qualquer acusado em sede de persecução criminal, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados.
A justa preocupação da comunidade internacional com a preservação da integridade das garantias processuais básicas reconhecidas às pessoas meramente acusadas de práticas delituosas tem representado, em tema de proteção aos direitos humanos, um dos tópicos mais sensíveis e delicados da agenda dos organismos internacionais, seja em âmbito regional, como o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 8º, § 2º, “def”), aplicável ao sistema interamericano, seja em âmbito universal, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, n. 3, “d”), celebrado sob a égide da Organização das Nações Unidas, e que representam instrumentos que reconhecem, a qualquer réu, dentre outras prerrogativas eminentes, o direito de comparecer e de estar presente à instrução processual, independentemente de achar-se sujeito, ou não, à custódia do Estado.
É importante destacar, finalmente, que essa orientação também encontra suporte em precedente igualmente firmado pela colenda Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, como resulta de acórdão que, no ponto ora em debate, está assim ementado:

“‘HABEAS CORPUS’. EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO. PACIENTE PRESA EM SÃO PAULO, RES­PONDENDO À AÇÃO PENAL NO RIO DE JANEIRO. CONDENAÇÃO. CERCEAMENTO DE DEFESA: AUSÊNCIA DA RÉ NOS ATOS PROCESSUAIS. IMPOSSIBILIDADE DE ENTREVISTAR-SE COM A DEFENSORA NOMEADA EM OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO.
...................................................
2. A falta de recursos materiais a inviabilizar as garantias constitucionais dos acusados em processo penal é inadmissível, na medida em que implica disparidade dos meios de manifestação entre a acusação e a defesa, com graves reflexos em um dos bens mais valiosos da vida, a liberdade.
3. A circunstância de que a paciente poderia contatar a Defensora Pública por telefone e cartas, aventada no ato impugnado, não tem a virtude de sanar a nulidade alegada, senão o intuito de contorná-la, resultando franco prejuízo à defesa, sabido que a comunicação entre presos e pessoas alheias ao sistema prisional é restrita ou proibida.
Ordem concedida.”
(HC 85.200/RJ, Rel. Min. EROS GRAU - grifei)

Sendo assim, e com tais considerações, peço vênia para deferir, integralmente, o pedido de “habeas corpus”.
É o meu voto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário