quarta-feira, 16 de março de 2011

Condenação Criminal Recorrível - Inelegibilidade - Lei da Ficha Limpa

Fonte: Informativo 616 do STF
Condenação Criminal Recorrível - Inelegibilidade - Lei da Ficha Limpa (Transcrições)

AC 2763-MC/RO*

RELATOR: Min. Celso de Mello

EMENTA: REGISTRO DE CANDIDATURA. LEI COMPLEMENTAR Nº 135, DE 04 DE JUNHO DE 2010. A QUESTÃO DE SUA APLICABILIDADE IMEDIATA. INCIDÊNCIA, NA ESPÉCIE, RELATIVAMENTE ÀS ELEIÇÕES DE 2010, DO POSTULADO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL (CF, ART. 16), QUE SUSPENDE, PELO PERÍODO DE 01 (UM) ANO, O INÍCIO DA EFICÁCIA DA “LEI QUE ALTERAR O PROCESSO ELEITORAL”. ENTENDIMENTO DO RELATOR AMPLAMENTE EXPOSTO EM VOTOS PROFERIDOS NO JULGAMENTO PLENÁRIO DO RE 630.147/DF E DO RE 631.102/PA. PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA (ADPF 144/DF, REL. MIN. CELSO DE MELLO). PRERROGATIVA ESSENCIAL, IMPREGNADA DE EFICÁCIA IRRADIANTE, ESPECIALMENTE AMPARADA, EM TEMA DE DIREITOS POLÍTICOS, PELA CLÁUSULA TUTELAR INSCRITA NO ART. 15, III, DA CARTA POLÍTICA, QUE EXIGE, PARA EFEITO DE VÁLIDA SUSPENSÃO DAS DIMENSÕES (ATIVA E PASSIVA) DA CIDADANIA, O TRÂNSITO EM JUL­GADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL. O ALTO SIGNIFICADO POLÍTICO-SOCIAL E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA. IMPOSSIBILIDADE DE LEI COMPLEMENTAR, MESMO QUE FUNDADA NO § DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, PELO FATO DE REFERIDA ESPÉCIE NORMATIVA QUALIFICAR-SE COMO ATO HIERARQUICAMENTE SUBORDINADO À AUTORIDADE DO TEXTO E DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. DECISÃO DO E. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL QUE DENEGOU REGISTRO DE CANDIDATURA, SOB O FUNDAMENTO DA MERA EXISTÊNCIA, CONTRA O CANDIDATO, DE CONDENAÇÃO PENAL EMANADA DE ÓRGÃO COLEGIADO, EMBORA QUESTIONADA ESTA EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA. CONSEQÜENTE INEXISTÊNCIA DO TRÂNSITO EM JULGADO DE REFERIDA CONDENAÇÃO CRIMINAL. PRESENÇA, NA ESPÉCIE, DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DO EXERCÍCIO DO PODER GERAL DE CAUTELA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

DECISÃO: Trata-se de “ação cautelar”, a mim distribuída na data de ontem (15/12/2010), que busca atribuir efeito suspensivo ao recurso extraordinário interposto pela parte ora requerente (RE 633.707/RO), que se insurge contra decisão do E. Tribunal Superior Eleitoral proferida nos autos do REspe nº 1131-43.2010.6.22.0000 (que foi conhecido, no entanto, como recurso ordinário), de relatoria do eminente Ministro HAMILTON CARVALHIDO.
Assinalo, por relevante, que o recurso extraordinário em questão sofreu, na origem, juízo positivo de admissibilidade.
Passo a apreciar o pedido formulado na presente sede processual.
Como se sabe, a concessão de medida cautelar, pelo Supremo Tribunal Federal, quando requerida na perspectiva de recurso extraordinário interposto pela parte interessada, quer se busque a outorga de efeito suspensivo ao apelo extremo, quer se pretenda a sustação da eficácia do acórdão impugnado, supõe, para legitimar-se, a conjugação necessária dos seguintes requisitos: (a) que tenha sido instaurada a jurisdição cautelar do Supremo Tribunal Federal (existência de juízo positivo de admissibilidade do recurso extraordinário, consubstanciado em decisão proferida pelo Presidente do Tribunal de origem ou resultante do provimento do recurso de agravo); (b) que o recurso extraordinário interposto possua viabilidade processual, caracterizada, dentre outras, pelas notas da tempestividade, do prequestionamento explícito da matéria constitucional e da ocorrência de ofensa direta e imediata ao texto da Constituição; (c) que a postulação de direito material deduzida pela parte recorrente tenha plausibilidade jurídica; e (d) que se demonstre, objetivamente, a ocorrência de situação configuradora do “periculum in mora” (RTJ 174/437-438, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Assentadas tais premissas, cabe verificar se a fundamentação jurídica em que se apóia a pretensão deduzida pela parte requerente atende, ou não, ao requisito da relevância.
O autor da presente ação, que se insurge contra decisão que o E. Tribunal Superior Eleitoral proferiu em sede recursal, postula a outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário que deduziu, com a conseqüente paralisação da eficácia do julgamento consubstanciado em acórdão assim ementado:

ELEIÇÕES 2010. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO FEDERAL. CAUSA DE INELEGIBILIDADE. CABIMENTO RECURSO ORDINÁRIO. CONDENAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. (ARTIGO 1º, I, ‘l’, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/90). DEFERIMENTO DE LIMINAR PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SUSPENSÃO DA INELEGIBILIDADE. CONDENAÇÃO CRIMINAL. PECULATO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA (ARTIGO 1º, I, e, 1 E 10, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/90). FUNDAMENTO SUFICIENTE.
1. Se suspensos os efeitos do acórdão que confirmou a condenação por improbidade administrativa, fica igualmente suspensa a inelegibilidade (artigo 11, § 10, da Lei nº 9.504/97, com redação dada pela Lei nº 12.034/2009)
2. É imperativo o reconhecimento da inelegibilidade e o consequente indeferimento do pedido de registro de candidatura de quem foi condenado por crime de peculato e formação de quadrilha, confirmado por acórdão de Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 1º, I, e, 1 e 10, da Lei Complementar nº 64/90, com redação dada pela Lei Complementar nº135/2010.
3. Recurso especial conhecido como ordinário e desprovido.”
(REspe nº 1131-43.2010.6.22.0000, Rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO - grifei)

Eis, em síntese, as razões que justificariam, segundo sustentado nesta sede processual, a outorga de eficácia suspensiva ao referido recurso extraordinário:

A plausibilidade jurídica do direito invocado significa a probabilidade de exercício presente ou futuro do direito de ação, pela ocorrência da plausibilidade, verossimilhança, do direito material posto em jogo.
A plausibilidade jurídica diz respeito à verossimilhança do direito. Contudo, não há necessidade de demonstrar que o direito existe, nem o julgador deve se entrever, a princípio, em buscá-lo, bastando uma mera probabilidade.
A plausibilidade do direito invocado está mais do que evidente, mormente, pelos argumentos apresentados no recurso extraordinário, atinentes à violação do princípio da anualidade, segundo o qual a Lei Complementar n.º 135/2010, não pode prevalecer neste pleito eleitoral de 2010; violação ao princípio da irretroatividade, do ato jurídico perfeito e do devido processo legal, já que a Lei Complementar não pode alcançar fatos anteriores à sua própria edição.
Registre-se, por oportuno, que os argumentos expostos no RE não foram analisados pelo STF sob o prisma dos arts. 1º, I, ‘e’ (condenação criminal), da LC 135/2010. Tais questões foram apreciadas por esta Col. Corte apenas em relação à alíneak’ do mesmo dispositivo legal (que versa sobre a hipótese de renúncia) - e, mesmo assim ocorreu empate no julgamento - tendo sido afastadas apenas em razão de uma interpretação regimental.
Ocorre que, ao que tudo indica, quando do julgamento do RE interposto pelo requerente, o Plenário do STF estará com sua composição completa, podendo qualquer outra conclusão ser dada - provavelmente no sentido da inconstitucionalidade do entendimento dado pelo TSE ao caso.
Indiscutível, pois, a plausibilidade do direito invocado, para fins de concessão da liminar pleiteada, cabendo, por oportuno repisar alguns dos fundamentos descritos no recurso extraordinário como forma de demonstrar a plausibilidade jurídica do alegado.
Antes disso, imperioso é apresentar fundamento autônomo e suficiente para a concessão da tutela pretendida, por ser evidente e induvidoso não mais existir óbice o indeferimento do registro de candidatura do requerente.
......................................................................................
Opericulum in moraé o último requisito necessário para o deferimento da tutela cautelar e traduz-se no perigo de demora gerado de dano irreparável ou de difícil reparação ao direito do postulante da tutela cautelar.
Com efeito, além da plausibilidade jurídica do direito material invocado, também se mostra evidente o perigo da demora, o que, juntamente como o primeiro requisito, não só autoriza como impõe a concessão da medida liminar ora pleiteada.
Acaso não seja concedida a liminar vindicada, o dano será irreparável, uma vez que o autor não poderá ser declarado eleito nem ser diplomado no próximo dia 16/12/2010 (quarta-feira), impedindo que a vontade popular dos mais de 43 mil eleitores de Rondônia seja levada em consideração.
Então, encontra-se presente ‘in casu’ opericulum in mora’, pois ainda não há previsão para julgamento do seu Recurso Extraordinário (RE 633707) interposto, sendo a concessão da tutela cautelar o único remédio jurídico cabível para assegurar-lhe a diplomação e a consequente posse no dia 1º de fevereiro de 2010, já que o recesso forense está prestes a iniciar.
Acaso não deferida a cautelar, o autor será penalizado com a perda de dias e quiçá meses de mandato obtido pelo voto popular, não por culpa sua, mas por mecanismos inerentes à própria tramitação do recurso extraordinário, que não tem data para ser julgado.
Pior que isso. Estará impedido de ser diplomado e de tomar posse, apesar de, sabidamente, não estar inelegível, já que o processo penal que embasa o indeferimento do seu registro de candidatura está prescrito, há muito, bastando apenas o reconhecimento pela Autoridade Judicial.
De outro lado, não existe ‘periculum in mora’ inverso.
Isso porque, neste primeiro momento, não se quer a cassação, anulação, reforma, revisão da decisão proferida pelo TSE, mas a concessão de efeito suspensivo e a sustação dos efeitos do acórdão, até porque ninguém sofrerá prejuízos acaso deferida a tutela pretendida.
Portanto, por essas breves razões, a cautelar é medida imperativa.” (grifei)

Passo à análise do pedido. E, ao fazê-lo, entendo assistir razão à parte ora requerente, seja pelo fundamento que se apóia na suposta transgressão ao princípio da anterioridade eleitoral inscrito no art. 16 da Constituição (reporto-me, aqui, aos votos que proferi no julgamento plenário do RE 630.147/DF e do RE 631.102/PA, nos quais entendi ineficaz, sem possibilidade de válida e imediata aplicação às eleições de 2010, a Lei Complementar nº 135/2010), seja, ainda, pela alegada ofensa à presunção constitucional de inocência e ao que dispõe o art. 15, III, da Lei Fundamental da República.
Quanto a este último aspecto, tenho presente a decisão que esta Suprema Corte proferiu no julgamento da ADPF 144/DF, de que fui Relator, e que restou consubstanciado na seguinte ementa:

(...) MÉRITO: RELAÇÃO ENTRE PROCESSOS JUDICIAIS, SEM QUE NELES HAJA CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL, E O EXERCÍCIO, PELO CIDADÃO, DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA – REGISTRO DE CANDIDATO CONTRA QUEM FORAM INSTAURADOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE NATUREZA CRIMINAL, EM CUJO ÂMBITO AINDA NÃO EXISTA SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO – (...)
PROBIDADE ADMINISTRATIVA, MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DO MANDATO ELETIVO, ‘VITA ANTEACTAE PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA – SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS E IMPRESCINDIBILIDADE, PARA ESSE EFEITO, DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL (CF, ART. 15, III) – (...)
(...) – PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA – EVOLUÇÃO HISTÓRICA E REGIME JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA – O TRATAMENTO DISPENSADO À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PELAS DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS, TANTO AS DE CARÁTER REGIONAL QUANTO AS DE NATUREZA GLOBAL – O PROCESSO PENAL COMO DOMÍNIO MAIS EXPRESSIVO DE INCIDÊNCIA DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA – EFICÁCIA IRRADIANTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA – POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DESSE PRINCÍPIO AO ÂMBITO DO PROCESSO ELEITORAL - HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADEENUMERAÇÃO EM ÂMBITO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 14, §§ 4º A 8º) – RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR ‘OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE’ – NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) – IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE A LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO VALOR FUNDAMENTAL, VERDADEIRO ‘CORNERSTONE’ EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA - PRIVAÇÃO DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA E PROCESSOS, DE NATUREZA CIVIL, POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVANECESSIDADE, TAMBÉM EM TAL HIPÓTESE, DE CONDENAÇÃO IRRECORRÍVELCOMPATIBILIDADE DA LEI Nº 8.429/92 (ART. 20, ‘CAPUT’) COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 15, V, c/c O ART. 37, § 4º) – O SIGNIFICADO POLÍTICO E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA – (...).”
(ADPF 144/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Com efeito, sabemos todos que a presunção de inocência – que se dirige ao Estado, para lhe impor limitações ao seu poder, qualificando-se, sob tal perspectiva, como típica garantia de índole constitucional, e que também se destina ao indivíduo, como direito fundamental por este titularizado – representa uma notável conquista histórica dos cidadãos, em sua permanente luta contra a opressão do poder.
O postulado do estado de inocência, ainda que não se considere como presunção em sentido técnico, encerra, em favor de qualquer pessoa sob persecução penal, o reconhecimento de uma verdade provisória, com caráter probatório, que repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade, até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em favor da pessoa condenada, a presunção de que é inocente.
, portanto, um momento claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento – insista-se -, o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público, um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades.
Mostra-se importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição, a significar que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância (ou por qualquer órgão colegiado de inferior jurisdição), ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que deixa de prevalecer – repita-secom o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República:

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
....................................................................................
III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;” (grifei)

Vale referir, no ponto, a esse respeito, a autorizada advertência do eminente Professor LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com o Professor VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Direito Penal – Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica”, vol. 4/85-91, 2008, RT):

O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (esta última locução tem origem no fascismo italiano, que não se conformava com a idéia de que o acusado fosse, em princípio, inocente).
Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8º, 2, da Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5°, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória.
Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5°, LVII).
O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devidaconsideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’ a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000, parágrafo 119).” (grifei)

Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve atuar, até o superveniente trânsito em julgado da condenação judicial, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral.
Nem se diga que a garantia fundamental de presunção da inocência teria pertinência e aplicabilidade unicamente restritas ao campo do direito penal e processual penal.
Torna-se importante assinalar, neste ponto, que a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia os seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e a prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não-criminais, em ordem a impedir, dentre outras graves conseqüências no plano jurídico – ressalvada a excepcionalidade de hipóteses previstas na própria Constituição -, que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (e, por isso mesmo, essencialmente instáveis) ou, então, que se imponham, ao réu, restrições a seus direitos, não obstante inexistente condenação judicial transitada em julgado.
O que se mostra relevante, a propósito do efeito irra­diante da presunção de inocência, que a torna aplicável a processos de natureza não-criminal, é a preocupação, externada por órgãos investidos de jurisdição constitucional, com a preservação da integridade de um princípio que não pode ser transgredido por atos estatais que veiculem, prematuramente, medidas gravosas à esfera jurídica das pessoas, que são, desde logo, indevidamente tratadas, pelo Poder Público, como se culpadas fossem, porque presumida, por arbitrária antecipação fundada em juízo de mera suspeita, a culpabilidade de quem figura, em processo penal ou civil, como simples réu!
Cabe referir, por extremamente oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, em julgamento plenário (RE 482.006/MG, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI), e interpretando a Constituição da República, observou, em sua decisão, essa mesma diretriz – que faz incidir a presunção constitucional de inocência também em domínio extrapenal –, explicitando que esse postulado constitucional alcança quaisquer medidas restritivas de direitos, independentemente de seu conteúdo ou do bloco que compõe, se de direitos civis ou de direitos políticos.
Daí a regra de prudência estabelecida no art. 15, III, da Constituição da República, a exigir, para efeito de suspensão temporária dos direitos políticos, notadamente da capacidade eleitoral passiva, vale dizer, do direito de ser votado, o trânsito em julgado da condenação judicial.
A exigência de coisa julgadaque representa, na constelação axiológica que se encerra em nosso sistema constitucional, valor de essencial importância na preservação da segurança jurídica - não colide, por isso mesmo, com a cláusula de probidade administrativa nem com a que se refere à moralidade para o exercício do mandato eletivo, pois a determinação de que se aguarde a definitiva formação da autoridade da “res judicata”, além de refletir um claro juízo de prudência do legislador, quer o constituinte (CF, art. 15, III), quer o comum (LC nº 64/90, art. 1º, I, “d”, “g” e “h”), encontra plena justificação na relevantíssima circunstância de que a imposição, ao cidadão, de gravíssimas restrições à sua capacidade eleitoral, deve condicionar-se ao trânsito em julgado da sentença, seja a que julga procedente a ação penal, seja aquela que julga procedente a ação civil por improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92, art. 20, “caput”).
Mostra-se relevante acentuar o alto significado que assume, em nosso sistema normativo, a coisa julgada, pois, ao propiciar a estabilidade das relações sociais e, ao dissipar as dúvidas motivadas pela existência de controvérsia jurídica (“res judicata pro veritate habetur”) e, ao viabilizar a superação dos conflitos, culmina por consagrar a segurança jurídica, que traduz, na concreção de seu alcance, valor de transcendente importância política, jurídica e social, a representar um dos fundamentos estruturantes do próprio Estado democrático de direito.
Veja-se, desse modo, que a privação temporária (suspensão) dos direitos políticos - de que resulta a perda da elegibilidade como conseqüência de condenação criminal transitada em julgado (CF, art. 15, III) ou da procedência definitiva da sentença que julga a ação civil de improbidade administrativa ou a representação em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político (Lei nº 8.429/92, art. 20, “caput”, c/c a LC nº 64/90, art. 1º, I, “d”, “g e “h”) - acha-se condicionada à estrita observância do trânsito em julgado do respectivo ato sentencial.
Essa exigência de irrecorribilidade atende à própria racionalidade do sistema de direito positivo, considerados os fundamentos que justificam a coisa julgada como um dos valores estruturantes do Estado democrático de direito.
Presente esse contexto, não vejo como possa o respeito ao instituto da coisa julgada traduzir transgressão à exigência de probidade administrativa e de moralidade para o exercício do mandato eletivo.
Inexiste, na realidade, qualquer situação de antinomia entre esses valores constitucionais, pois eles convivem, harmoniosamente, em nosso sistema normativo, na medida em que a observância do trânsito em julgado de sentenças, cujos efeitos afetam e restringem, gravemente, a esfera jurídica de quem é condenado, apenas confere certeza e prestigia a segurança jurídica, que também se qualifica como valor constitucional a ser preservado.
Esse, pois, o sentido de racionalidade que se mostra ínsito às cláusulas, que, fundadas na Constituição e na legislação comum, condicionam a eficácia supressiva da elegibilidade de qualquer cidadão à prévia consumação do trânsito em julgado da sentença, penal ou civil, que contra ele foi proferida.
Como anteriormente assinalado, a Constituição de 1988, tratando-se de condenação penal (único fundamento que dá suporte ao acórdão do Tribunal Superior Eleitoral impugnado no RE 633.707/RO), erigiu-a em causa suspensiva dos direitos políticos, desde que “transitada em julgado” (CF, art. 15, III).
Essa exigência – que decorre do próprio texto constitucional e que não se opõe à aplicação dos postulados da probidade e da moralidade (que incidirão tão logo se torne irrecorrível o ato sentencial) – representou uma significativa evolução em relação ao modelo que prevaleceu sob o ordenamento constitucional anterior, eis que, como se sabe, a norma inscrita no art. 15, III, da vigente Constituição foi considerada auto-aplicável pelo Supremo Tribunal Federal (RE 179.502/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES – RMS 22.470-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), enquanto que esta mesma Corte (RTJ 61/581 – RTJ 82/647) e o Tribunal Superior Eleitoral (Boletim Eleitoral do TSE, vol. 256/328), em decisões proferidas sob a égide da Carta Federal de 1969, que exigia lei complementar (jamais editada) para dispor sobre a suspensão dos direitos políticos “por motivo de condenação criminal”, reconheciam que essa medida dependia da integração normativa do art. 149, § 3º, daquela Carta Política, que contemplava regra impregnada de eficácia meramente limitada, desprovida, em conseqüência, de aplicabilidade direta, imediata e integral.
Vê-se, desse modo, que o modelo que se contém na vigente Constituição, por não depender de qualquer complementação legislativa, torna imediata, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a privação temporária dos direitos políticos, inclusive a supressão da própria elegibilidade, assim obstando que criminosos tenham acesso a qualquer mandato eletivo.
A perda da elegibilidade constitui situação impregnada de caráter excepcional, pois inibe o exercício da cidadania passiva, comprometendo a prática da liberdade em sua dimensão política, eis que impede o cidadão de ter efetiva participação na regência e na condução do aparelho governamental.
Por tal motivo, o constituinte impôs, como requisito necessário à suspensão dos direitos políticos, na hipótese de condenação penal (único fundamento que dá sustentação à decisão do TSE impugnada no RE 633.707/RO), o trânsito em julgado da respectiva sentença, pois a gravidade dos efeitos inibitórios que resultam da sentença penal condenatória mostra-se tão radical em suas conseqüências na dimensão político-jurídica do cidadão, que tornou imprescindível, por razões de segurança jurídica e de prudência, a prévia formação da coisa julgada.
Nota-se, portanto, que a questão a ser examinada nestes autos assim pode ser sintetizada: o direito fundamental à presunção de inocência restringe-se, quanto à sua incidência, apenas ao domínio processual penal ou, ao contrário, trata-se de postulado impregnado de espectro mais amplo, que também alcança e abrange a atividade do Poder Público em qualquer esfera de sua atuação, impondo-lhe limites inultrapassáveis?
O exame da matéria, na espécie, impõe que se rememore o quadro normativo que existiu sob a égide do anterior (e autoritário) ordenamento constitucional.
A Carta Federal de 1969, outorgada por um triunvirato militar, que preferiu mascarar o ato de imposição sob a designação formal de Emenda Constitucional nº 01/69, estabeleceu, no art. 151, em sua redação original, regra que assim disciplinou a matéria em causa, reproduzindo, no que concerne à defesa da probidade administrativa, a cláusula contemplada na Carta Política de 1967 (art. 148, II):

Art. 151. Lei complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos dentro dos quais cessará esta, visando a preservar:
I - o regime democrático;
II - a probidade administrativa;
III - a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprêgo públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico; e
IV - a moralidade para o exercício do mandato, levada em consideração a vida pregressa do candidato.” (grifei)

Essa regra da Carta Política de 1969, por sua vez, sofreu alteração, introduzida pela EC nº 08/77, que deu, ao referido art. 151, a seguinte redação:

Art. 151. Lei complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos nos quais cessará esta, com vistas a preservar, considerada a vida pregressa do candidato:
I - o regime democrático;
II - a probidade administrativa;
III - a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprêgo públicos da administração direta ou indireta, ou do poder econômico; e
IV - a moralidade para o exercício do mandato.” (grifei)

Para regulamentar esse preceito constitucional (CF/69, art. 151), foi editada a Lei Complementar nº 05/70, que, dentre as várias hipóteses de inelegibilidade, previu a perda da capacidade eleitoral passiva em decorrência da mera instauração de processo judicial contra qualquer potencial candidato que houvesse incidido em suposta prática de determinadas infrações penais.
Eis o teor dessa norma legal, inscrita em referido diploma legislativo:

Art. - São inelegíveis:
I - para qualquer cargo eletivo:
....................................................................................
n) os que tenham sido condenados ou respondam a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público recebida pela autoridade judiciária competente, por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública e a administração pública, o patrimônio ou pelo delito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não absolvidos ou penalmente reabilitados;” (grifei)

Bastava, portanto, no direito anterior, para gerar situação de inelegibilidade, o simples recebimento de uma denúncia, por alegado cometimento de certos ilícitos penais.
Essa cláusula legal provocou, mesmo sob a égide de um regime autoritário, amplo debate em torno de sua constitucionalidade, valendo relembrar que o E. Tribunal Superior Eleitoral pronunciou-se, diversas vezes, sobre a matéria, reconhecendo, num momento inicial, a validade constitucional da regra legal em questão, até que o eminente Ministro XAVIER DE ALBUQUERQUE, em voto que prevaleceu no julgamento do REspe 4.221/RS, dissentiu dessa orientação jurisprudencial, “(...) pela razão de considerar inconstitucional o art. 1º, inciso I, letran’, da Lei Complementar nº 5, de acordo com o voto que ontem proferi neste Tribunal” (grifei).

Cabe rememorar, neste ponto, por relevante, os fundamentos pelos quais o eminente Ministro XAVIER DE ALBUQUERQUE, mesmo em votos vencidos, como aquele proferido no julgamento, pelo TSE, do Recurso Ordinário nº 4.189/RJ, entendia, com absoluta razão, ser inconstitucional a norma inscrita no art. 1º, inciso I, alínea “n”, da Lei Complementar nº 5/70:

“(...) Por que admitir que o simples fato de pendência de um processo, com denúncia oferecida e recebida, pese indelevelmente sobre a moralidade de alguém, a ponto de lhe acarretar o ônus brutal da inelegibilidade? Não posso admitir. E não posso admitir, porque estou lidando com princípios eternos, universais, imanentes, que não precisam estar inscritos em Constituição nenhuma.
Mas, por acaso, esse princípio, se não está expresso na Constituição da República Federativa do Brasil, está inscrito, de modo o mais veemente e peremptório, na famosa ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem’, que é capítulo de uma inexistente, mas evidente Constituição de todos os povos. O Brasil contribuiu, com sua participação e voto, para que a Terceira Assembléia Geral das Nações Unidas, há mais de 25 anos, aprovasse uma ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem’, e essa declaração insculpiu, no primeiro inciso do seu art. 11, esta regra de verdadeira Moral e do mais límpido Direito:
‘Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa’.
Este princípio é inerente ao nosso regime, pois está compreendido entre aqueles que a Constituição adota. Não precisa ele estar nela explicitado, em letra de forma. Basta que o comparemos com o regime da Constituição brasileira (...), tanto que ela o inscreve como um daqueles bens jurídicos que se devem preservar no estabelecimento das inelegibilidades. Basta que comparemos o princípio com o regime, a vermos se há entre eles coincidência ou repulsa. É evidente que a coincidência é a única alternativa. O Brasil proclamou, num documento internacional e no regime que adotou, essa verdade universal, que, insisto, não precisa estar inscrita em lei nenhuma, porque é principio ético e jurídico, imanente.
O fato de alguém responder a processo criminal adere, objetivamente, à sua vida. Ninguém, que respondeu a um processo criminal, retira jamais esse episódio da sua história pessoal. Mas não pode ele, por si só, comprometer a moralidade do cidadão, que deve ser presumido inocente enquanto não for julgado culpado.” (grifei)

É certo, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 86.297/SP, Rel. Min. THOMPSON FLORES, proclamou a validade constitucional da norma legal em questão.
Torna-se importante registrar, a esse respeito, que se revelava tão evidente o conteúdo autoritário do preceito legal em causa, porque transgressor do princípio que consagra, nas sociedades democráticas, a presunção de inocência, que os próprios curadores do regime militar, no Governo do Presidente Figueiredo, decidiram banir semelhante regra jurídica do sistema de direito positivo nacional, fazendo-o mediante a edição da Lei Complementar nº 42/82, cujo art. 1º assim dispunha:

Art. 1º - As alíneas b e n do inciso I do art. 1º da Lei Complementar nº 5, de 29 de abril de 1970, passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º - .....................................................................
I - ................................................................................
.....................................................................................
n) os que tenham sido condenados (Vetado) por crime contra a segurança nacional e a ordem política e social, a economia popular, a fé pública, a Administração Pública e o patrimônio, ou pelo delito previsto no art. 22 desta Lei Complementar, enquanto não penalmente reabilitados; (...).’” (grifei)

Devo observar, por necessário, que o Supremo Tribunal Federal, ao decidir o RE 99.069/BA, Rel. Min. OSCAR CORRÊA, e tendo presente a alteração introduzida pela Lei Complementar nº 42/82, que condicionava o reconhecimento da inelegibilidade de qualquer candidato à existência de sentença condenatória, expressamente proclamou que a perda da capacidade eleitoral passiva dependeria do trânsito em julgado da condenação, não bastando, para tanto, a mera prolação de uma sentença.
Extremamente esclarecedoras, e muito atuais, as razões com que o eminente e saudoso Ministro OSCAR CORRÊA, na condição de Relator, fundamentou, em referido julgamento, o seu douto voto:

“(...) Não há como querer distinguir entre efeitos da sentença condenatória para fins comuns e para fins especiais, como seriam os da lei de inelegibilidade. Tal distinção – que não se encontra em nenhum texto e não nos cabe criar – não tem razão de ser, tanto mais excepcionada contra o réu, para agravar-lhe a situação.
Na verdade, quando a lei – qualquer que seja – se refere a condenação, há que se entender condenação definitiva, transitada em julgado, insuscetível de recurso que a possa desfazer.
Nem se alegue (...) que ‘essa interpretação era a que se coadunava com a moralidade que o art. 151, IV da Constituição visa a preservar’: há que preservar a moralidade, sem que, sob pretexto de defendê-la e resguardá-la, se firam os direitos do cidadão à ampla defesa, à prestação jurisdicional, até a decisão definitiva, que o julgue, e condene, ou absolva.
Não preserva a moralidade interpretação que considera condenado quem o não foi, em decisão final irrecorrível. Pelo contrário: a ela se opõe, porque põe em risco a reputação de alguém, que se não pode dizer sujeito a punição, pela prática de qualquer ilícito, senão depois de devida, regular e legalmente condenado, por sentença de que não possa, legalmente, recorrer.
11. Nem vem ao caso (...) discutir aqui, como se debateu larga, proficiente e notavelmente no RE 86.297 (RTJ 79/671) o problema da presunção de inocência, se dele prescindo para a conclusão a que viso. É que condenado o Recorrente, pela Justiça Federal da Bahia, absolveu-o o C.T.F.R. (certidão de fs. 43), o que demonstra, irrespondivelmente, como é precipitada, ‘data venia’, a interpretação que faz da condenação – sujeita ainda a recurso – motivo suficiente para a decretação da inelegibilidade prevista na LC nº 5/70, art. 1º, I, ‘n’: a absolvição do Recorrente responde aos argumentos que, em contrário, se formulem. Sem que nos precisemos deter, em hipóteses – não insuscetíveis de ocorrerem – em que a ação penal e a própria condenação possam ser o resultado de uma urdida inelegibilidade, que, consumada, se faz irreparável.
12. Este (...) aspecto que não pode ser olvidado, e a que conduz a interpretação do v. acórdão recorrido. Veja-se a hipótese dos autos: julgado inelegível, em virtude de condenação, no Juízo de 1º grau, teve o Recorrente negado o registro de sua candidatura a deputado federal. Conseguida, agora, a absolvição, e admitindo-se o provimento deste recurso – argumento que me permito expender – à véspera do pleito, já se lhe terá causado mal irreparável: não pôde concorrer à eleição, à qual se candidatara, e nem há reparação possível, de qualquer espécie, a esse mal.
13. Nem se argumente que ‘se o simples recebimento da denúncia se compatibilizava com esse preceito constitucional, não é possível entender-se que a interpretação que não exija o trânsito em julgado de decisão condenatória seja atentatória a ele’ (fs. 160).
A verdade é que a decisão singular desta Egrégia Corte, que acolheu a constitucionalidade daquele preceito – com os memoráveis debates que provocou – não chegou a ser provada em outros casos. E tanto não era esta a melhor solução que a L.C. nº 42/82 a excluiu, com o que, em verdade, valorizou a posição assumida pelos que a combateram.
14. Não há de se exigir que a lei se refira a condenação transitada em julgado, o que seria levar adiante demais as exigências de explicitação.
Na verdade, quando o art. 151 delegou à legislação complementar estabelecer os casos de inelegibilidades e os prazos nos quais cessará esta, não lhe autorizou alterar o sistema legal brasileiro (e, pode dizer-se, universal) para considerar condenação a que, desde logo, em primeiro grau, se imponha, sem que transite em julgado. Assinalou bem o recorrente que esse entendimento ‘implica, nada mais, nada menos, do que atribuir, ao Juiz criminal de 1º grau, que nem eleitoral é, o poder de decretar inelegibilidades.
Pior: de fazê-lo em caráter irrevogável, quando se sabe que a sentença de que se recorre em tempo hábil é apenas um projeto de decisão judicial a que a lei, por forma expressa, ao atribuir efeito suspensivo ao recurso, negou executoriedade’ (fs. 5/6 do agravo).
Considero que, com isso, em realidade, se vulnerou o § 15 do artigo 153 da C.F., recusando a ampla defesa a que têm direito os acusados, e, mais, desconsiderando recurso que lhe é inerente, e conferindo efeitos agravadores que não tem, tomando, como definitiva, sentença reformável, e tanto, que o foi. (...).”
(RE 99.069/BA, Rel. Min. OSCAR CORRÊA – grifei)

Com a instauração, em nosso País, de uma ordem plenamente democrática, assim consagrada pela vigente Constituição, intensificou-se o círculo de proteção em torno dos direitos fundamentais, qualquer que seja o domínio de sua incidência e atuação, compreendidos, para efeito dessa tutela constitucional e em perspectiva mais abrangente, todos os blocos normativos concernentes aos direitos individuais e coletivos, aos direitos sociais e aos direitos políticos, em ordem a conferir-lhes real eficácia, seja impondo, ao Estado, deveres de abstenção (liberdades clássicas ou negativas), seja dele exigindo deveres de prestação (liberdades positivas ou concretas), seja, ainda, assegurando, ao cidadão, o acesso aos mecanismos institucionalizados de exercício do poder político na esfera governamental (liberdade-participação).
É por isso que entendo, mesmo tratando-se do bloco pertinente aos direitos políticos – que se vinculam aos postulados da soberania popular e da democracia representativa -, que não se pode, como corretamente advertia o eminente Ministro EROS GRAU, buscar interpretação que substitua, com grave comprometimento da legalidade e do procedimento legal, a racionalidade formal do direito, que se funda nas instituições e nas leis, por critérios impregnados de valorações que culminam por afetar a segurança e a certeza jurídicas, com sério risco à integridade do próprio sistema de garantias construído pela Constituição, cuja normatividade não pode ser potencializada nem tornada relativa - consoante ressaltava o Ministro EROS GRAU - por uma explicitação teórica de distintos blocos de direitos e preceitos.
Vale reafirmar, pelas razões precedentemente expostas, a advertência de que a mera existência de procedimentos estatais em curso (como inquéritos policiais e processos penais em andamento) não pode gerar conseqüências incompatíveis com a presunção de inocência, porque esta se desfaz com o reconhecimento definitivo, em ato irrecorrível, da culpabilidade de alguém.
Não é por outro motivoinsista-se - que a própria Constituição, ao dispor sobre a suspensão dos direitos políticos, como a privação temporária do direito de sufrágio (direito de votar) e do direito de investidura em mandatos eletivos (direito de ser votado), impõe, como requisito inafastável, a existência de “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos” (CF, art. 15, III). O fato relevante, em tal matéria, é um só: episódios processuais ainda não definidos, porque deles ausente sentença judicial transitada em julgado, não podem repercutir, de modo irreversível, sobre o estado de inocência que a própria Constituição garante e proclama em favor de qualquer pessoa.
O “status poenalise o estatuto de cidadania, desse modo, não podem sofrer - antes que sobrevenha o trânsito em julgado de condenação criminal - restrições que afetem a esfera jurídica das pessoas em geral e dos cidadãos em particular.
Essa opção do legislador constituinte (pelo reconhecimento do estado de inocência) claramente fortaleceu o primado de um direito básico, comum a todas as pessoas, de que ninguémabsolutamente ninguémpode ser presumido culpado em suas relações com o Estado, exceto se já existente sentença transitada em julgado. É por isso que este Supremo Tribunal Federal tem repelido, por incompatíveis com esse direito fundamental, restrições de ordem jurídica, somente justificáveis em face da irrecorribilidade de decisões judiciais.
O fato é que não podem repercutir (como já salientado), contra qualquer pessoa, sob pena de transgressão ao postulado constitucional que consagra o estado de inocência, situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário. Isso significa que inquéritos policiais em andamento e processos penais ainda em curso ou, até mesmo, condenações criminais sujeitas a recursos (inclusive aos recursos excepcionais) não podem ser considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de pronunciamento absolutório, como fatores de descaracterização desse direito fundamental proclamado pela própria Constituição da República.
Não obstante tais considerações, observo que o ora requerente teve o registro de sua candidatura negado pelo só fato de existir, contra ele, condenação penal emanada de órgão colegiado do Poder Judiciário, embora ainda não transitada em julgado, porque impugnada, como efetivamente o foi, em sede recursal extraordinária (RE 633.707/RO).
O acórdão em questão, que manteve a denegação de registro de candidatura do ora requerente, não se ajustaria, segundo entendo, ao que dispõe, de modo incondicional, o inciso III do art. 15 da Constituição da República, que exige, tratando-se de procedimentos penais, o trânsito em julgado da sentença criminal condenatória.
As razões que venho de expor revelam a significativa importância de que se reveste, em nosso ordenamento positivo, o postulado constitucional que consagra, como prerrogativa ínsita ao regime dos direitos fundamentais, a presunção de inocência.
Registrem-se, finalmente, de um lado, a existência de decisões desta Suprema Corte, em contexto semelhante ao aqui delineado (AI 709.634/GO, Rel. Min. DIAS TOFFOLI – RE 281.012/PI, Rel. Min. GILMAR MENDES), e, de outro, a ocorrência de situação configuradora do “periculum in mora”, tal como demonstrado pelo autor desta ação cautelar.
Desse modo, e em face das razões expostas, defiro, em caráter excepcional, até final julgamento do recurso extraordinário em questão (RE 633.707/RO), o pedido formulado nestes autos, para suspender, cautelarmente, a eficácia do acórdão emanado do E. Tribunal Superior Eleitoral (REspe nº 1131-43.2010.6.22.0000), viabilizando-se, em conseqüência, a diplomação do ora requerente, nos termos em que postulado.
Comunique-se, transmitindo-se cópia da presente decisão à Presidência do E. Tribunal Superior Eleitoral (REspe nº 1131- 43.2010.6.22.0000) e à Presidência do E. Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia (Registro de Candidatura nº 1131-43.2010.6.22.0000).
Publique-se.
Brasília, 16 de dezembro de 2010.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

* decisão publicada no DJe de 1º.2.2011

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