quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006 - Violação do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal - Repercussão geral reconhecida - STF


REPERCUSSÃO GERAL EM RE N. 635.659-SP
RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
Constitucional. 2. Direito Penal. 3. Constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006. 3. Violação do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. 6. Repercussão geral reconhecida. 

Crime Eleitoral - Procedimento Penal - Conflito entre o CPP e o Código Eleitoral - Não Aplicação do Critério da Especialidade - Aplicação de Procedimento Penal mais Favorável


Crime Eleitoral - Procedimento Penal - Conflito entre o CPP e o Código Eleitoral - Não Aplicação do Critério da Especialidade - Aplicação de Procedimento Penal mais Favorável (Transcrições)

HC 107795 MC/SP*

RELATOR: Min. Celso de Mello

EMENTA: CRIME ELEITORAL. PROCEDIMENTO PENAL DEFINIDO PELO PRÓPRIO CÓDIGO ELEITORAL (“LEX SPECIALIS”). PRETENDIDA OBSERVÂNCIA DO NOVOITER PROCEDIMENTAL ESTABELECIDO PELA REFORMA PROCESSUAL PENAL DE 2008, QUE INTRODUZIU ALTERAÇÕES NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (“LEX GENERALIS”). ANTINOMIA MERAMENTE APARENTE, PORQUE SUPERÁVEL MEDIANTE APLICAÇÃO DO CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE (“LEX SPECIALIS DEROGAT LEGI GENERALI”). CONCEPÇÃO ORTODOXA QUE PREVALECE, ORDINARIAMENTE, NA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS ANTINÔMICOS QUE OPÕEM LEIS DE CARÁTER GERAL ÀQUELAS DE CONTEÚDO ESPECIAL. PRETENDIDA UTILIZAÇÃO DE FATOR DIVERSO DE SUPERAÇÃO DESSA ESPECÍFICA ANTINOMIA DE PRIMEIRO GRAU, MEDIANTE OPÇÃO HERMENÊUTICA QUE SE MOSTRA MAIS COMPATÍVEL COM OS POSTULADOS QUE INFORMAM O ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DE DEFESA. VALIOSO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (AP 528-AgR/DF, REL. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI). NOVA ORDEM RITUAL QUE, POR REVELAR-SE MAIS FAVORÁVEL AO ACUSADO (CPP, ARTS. 396 E 396-A, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.719/2008), DEVERIA REGER O PROCEDIMENTO PENAL, NÃO OBSTANTE DISCIPLINADO EM LEGISLAÇÃO ESPECIAL, NOS CASOS DE CRIME ELEITORAL. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DESSA POSTULAÇÃO. OCORRÊNCIA DE “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão, que, emanada do E. Tribunal Superior Eleitoral, restou consubstanciada em acórdão assim ementado:

Habeas corpus’. Ação penal. Inscrição fraudulenta de eleitor. Falsidade ideológica. Condutas típicas. Procedimento. Código de Processo Penal. Aplicação subsidiária. Adoção. Necessidade. Código Eleitoral. Norma específica. Ordem denegada.
1. O trancamento da ação penal na via do ‘habeas corpus’ somente é possível quando, sem a necessidade de reexame do conjunto fático-probatório, evidenciar-se, de plano, a atipicidade da conduta, a ausência de indícios para embasar a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade, hipóteses não verificadas ‘in casu’. Precedentes.
2. No processamento das infrações eleitorais devem ser observadas as disposições específicas dos arts. 359 e seguintes do Código Eleitoral, devendo ser aplicado o Código de Processo Penal apenas subsidiariamente.
3. Não constitui constrangimento ilegal o recebimento de denúncia que contém indícios suficientes de autoria e materialidade, além da descrição clara de fatos que configuram, em tese, os crimes descritos nos arts. 289 e 350 do Código Eleitoral.
4. Ordem denegada.”
(HC 2825-59.2010.6.00.0000/SP, Rel. Min. MARCELO RIBEIRO - grifei)

Busca-se, na presente impetração, a concessão de medida cautelar destinada a suspender o curso do Processo-crime nº 02/2009, ora em tramitação perante o Juízo da 203ª Zona Eleitoral da comarca de Viradouro/SP.
Aduz, em síntese, a parte ora impetrante, nestewrit”, a ocorrência de nulidade absoluta do procedimento penal em questão, alegando-se que o magistrado de primeiro grau teria desrespeitado o rito estabelecido nos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, eis queas disposições dos artigos 395 a 398 do Código de Processo Penal aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados nesse Código, incluindo-se, assim, os processos apuratórios de crimes eleitorais, ainda que o rito procedimental seja regulado por lei especial” (grifei).
Presente tal contexto, passo a examinar a postulação cautelar ora deduzida nesta sede processual.
Não se ignora que, na aplicação das normas que compõem o ordenamento positivo, podem registrar-se situações de conflito normativo, reveladoras da existência de antinomia em sentido próprio, eminentemente solúvel, porque superável mediante utilização, em cada caso ocorrente, de determinados fatores, tais como o critério hierárquico (“lex superior derogat legi inferiori”), o critério cronológico (“lex posterior derogat legi priori”) e o critério da especialidade (“lex specialis derogat legi generali”), que têm a virtude de viabilizar a preservação da essencial coerência, integridade e unidade sistêmica do ordenamento positivo (RTJ 172/226-227, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
No caso ora em exame, mostra-se pertinente a invocação do critério da especialidade, pois se acham em (aparente) conflito regras legais, de caráter procedimental, inscritas no Código de Processo Penal (“lex generalis”) e no Código Eleitoral (“lex specialis”).
A utilização do critério da especialidade representaria, no caso, a solução ortodoxa da antinomia de primeiro grau registrada no contexto ora em exame.
Essa concepção ortodoxa, que faz incidir, em situação de antinomia aparente, o critério da especialidade, tem prevalecido, ordinariamente, no entendimento doutrinário, como resulta da lição de eminentes autores (HUGO DE BRITO MACHADO, “Introdução ao Estudo do Direito”, p. 164/166 e 168, itens ns. 1.2, 1.3 e 1.6, 2ª ed., 2004, Atlas; MARIA HELENA DINIZ, “Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada”, p. 67/69, item n. 4, e p. 72/75, item n. 7, 1994, Saraiva; ROBERTO CARLOS BATISTA, “Antinomias Jurídicas e Critérios de Resolução”, “in” Revista de Doutrina e Jurisprudência-TJDFT, vol. 58/25-38, 32-34, 1998; RAFAEL MARINANGELO, “Critérios para Solução de Antinomias do Ordenamento Jurídico”, “in” Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 15/216-240, 232/233, 2005, RT, v.g.), valendo referir, dentre eles, o magistério, sempre lúcido e autorizado, de NORBERTO BOBBIO (“Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 91/92 e 95/97, item n. 5, trad. Cláudio de Cicco/Maria Celeste C. J. Santos, 1989, Polis/Editora UnB), para quem, ocorrendo situação de conflito entre normas (aparentemente) incompatíveis, deve prevalecer, por efeito do critério da especialidade, o diploma estatal “que subtrai, de uma norma, uma parte de sua matéria, para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória)...” (grifei).
Ocorre, no entanto, que se invoca, no caso, um outro critério, que não o da especialidade, fundado em opção hermenêutica que se legitima em razão de se mostrar mais compatível com os postulados que informam o estatuto constitucional do direito de defesa, conferindo-lhe substância, na medida em que a nova ordem ritual definida nos arts. 396 e 396-A do CPP, na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, revela-se evidentemente mais favorável que a disciplina procedimental resultante do próprio Código Eleitoral.
Sabemos que a reforma processual penal estabelecida por legislação editada em 2008 revelou-se mais consentânea com as novas exigências estabelecidas pelo moderno processo penal de perfil democrático, cuja natureza põe em perspectiva a essencialidade do direito à plenitude de defesa e ao efetivo respeito, pelo Estado, da prerrogativa ineliminável do contraditório.
Bem por isso, a Lei nº 11.719/2008, ao reformular a ordem ritual nos procedimentos penais, instituiu fase preliminar caracterizada pela instauração de contraditório prévio, apto a ensejar, ao acusado, a possibilidade de argüir questões formais, de discutir o próprio fundo da acusação penal e de alegar tudo o que possa interessar à sua defesa, além de oferecer justificações, de produzir documentos, de especificar as provas pretendidas e de arrolar testemunhas, sem prejuízo de outras medidas ou providências que repute imprescindíveis.
Com tais inovações, o Estado observou tendência já consagrada em legislação anterior, como a Lei nº 10.409/2002 (art. 38) e a Lei nº 11.343/2006 (art. 55), cujas prescrições viabilizaram a prática de verdadeiro contraditório prévio no qual o acusado poderia invocar todas as razões de defesatanto as de natureza formal quanto as de caráter material.
Mostrou-se tão significativa essa fase procedimental que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em sucessivas decisões, reconheceu que a inobservância desse “contraditório prévioconstituía causa de nulidade processual absoluta (HC 87.346/MS, Rel. p/ o acórdão Min. CÁRMEN LÚCIA - HC 90.226/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 98.382/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RHC 86.680/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, v.g.), como o evidenciam, dentre outros, os seguintes julgados:

HABEAS CORPUS’ – DIREITO AO CONTRADITÓRIO PRÉVIO (LEI Nº 10.409/2002, ART. 38) – REVOGAÇÃO DESSE DIPLOMA LEGISLATIVO – IRRELEVÂNCIAEXIGÊNCIA MANTIDA NA NOVÍSSIMA LEI DE TÓXICOS (LEI Nº 11.343/2006, ART. 55) – INOBSERVÂNCIA DESSA FASE RITUAL PELO JUÍZO PROCESSANTE – NULIDADE PROCESSUAL ABSOLUTAOFENSA AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DO ‘DUE PROCESS OS LAW’ – PEDIDO DEFERIDO.
- A inobservância do rito procedimental previsto na (revogada) Lei nº 10.409/2002 configurava típica hipótese de nulidade processual absoluta, sendo-lhe ínsita a própria idéia de prejuízo, eis que o não-cumprimento do que determinava, então, o art. 38 do diploma legislativo em causa comprometia o concreto exercício, pelo denunciado, da garantia constitucional da plenitude de defesa. Precedentes.
- Subsistência, na novíssima Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343/2006, art. 55), dessa mesma fase ritual de contraditório prévio, com iguais conseqüências jurídicas, no plano das nulidades processuais, se descumprida pelo magistrado processante.
- A exigência de fiel observância, por parte do Estado, das formas processuais estabelecidas em lei, notadamente quando instituídas em favor do acusado, representa, no âmbito das persecuções penais, inestimável garantia de liberdade, pois o processo penal configura expressivo instrumento constitucional de salvaguarda dos direitos e garantias assegurados ao réu. Precedentes.
(HC 93.581/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

(...) II - Defesa - Entorpecentes - Nulidade por falta de oportunidade para a defesa preliminar prevista no art. 38 da L. 10.409/02: demonstração de prejuízo: prova impossível (HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926; HC 85.443, 1ª T., 19.4.05, Pertence, DJ 13.5.05).
Não bastassem o recebimento da denúncia e a superveniente condenação do paciente, não cabe reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada a oportunidade legal para a defesa preliminar, a denúncia não teria sido recebida.
(HC 84.835/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma- grifei)

HABEAS CORPUS’. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. RITO DO ART. 38 DA LEI 10.409/2002. INOBSERVÂNCIA. EXISTÊNCIA DE PREJUÍZO PARA A DEFESA.
A inobservância do rito do art. 38 da Lei nº 10.409/2002, que assegura o contraditório prévio ao denunciado pelo crime de tráfico de entorpecentes, resulta na nulidade do processo penal, desde o recebimento da denúncia.
Habeas corpus conhecido e ordem concedida.
(HC 94.027/SP, Rel. p/ o acórdão Min. JOAQUIM BARBOSA - grifei)

Esta Suprema Corte, de outro lado, tendo presentes as inovações produzidas pelos diplomas legislativos que introduziram expressivas reformas em sede processual penal (Lei 11.689/2008 – Lei nº 11.690/2008 - Lei nº 11.719/2008), veio a adequar, mediante construção jurisprudencial, a própria Lei nº 8.038/90 (que já previa fase de contraditório prévio) ao novo modelo ritual, fazendo incidir, nos processos penais originários, a regra que, fundada na Lei nº 11.719/2008 (CPP, art. 400), definiu o interrogatório (qualificado como “depoimento pessoal” pelo art. 359 do Código Eleitoral, na redação que lhe deu a Lei nº 10.732/2003) como o último ato da fase de instrução probatória, por entender que se tratava de medida evidentemente mais favorável ao réu:

PROCESSUAL PENAL. INTERROGATÓRIO NAS AÇÕES PENAIS ORIGINÁRIAS DO STF. ATO QUE DEVE PASSAR A SER REALIZADO AO FINAL DO PROCESSO. NOVA REDAÇÃO DO ART. 400 DO CPP. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
I – O art. 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.719/2008, fixou o interrogatório do réu como ato derradeiro da instrução penal.
II – Sendo tal prática benéfica à defesa, deve prevalecer nas ações penais originárias perante o Supremo Tribunal Federal, em detrimento do previsto no art. 7º da Lei 8.038/90 nesse aspecto. Exceção apenas quanto às ações nas quais o interrogatório já se ultimou.
III – Interpretação sistemática e teleológica do direito.
IV – Agravo regimental a que se nega provimento.
(AP 528-AgR/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI - grifei)

Tenho por relevante, bem por isso, esse aspecto da causa ora em exame, uma vez que a previsão do contraditório prévio a que se referem os artigos 396 e 396-A do CPP, mais do que simples exigência legal, traduz indisponível garantia de índole jurídico- constitucional assegurada aos denunciados, de tal modo que a observância desse rito procedimental configura instrumento de clara limitação ao poder persecutório do Estado, ainda mais se se considerar que, nessa resposta préviaque compõe fase processual insuprimível (CPP, art. 396-A, § 2º) -, torna-se lícita a formulação, nela, de todas as razões, de fato ou de direito, inclusive aquelas pertinentes ao mérito da causa, reputadas essenciais ao pleno exercício da defesa pelo acusado, como assinala, com absoluta correção, o magistério da doutrina (EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA e DOUGLAS FISCHER, “Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência”, p. 869/870, 2ª ed., 2011, Lumen Juris; PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY, “Curso de Processo Penal”, p. 374/375, 4ª ed., 2009, Forense; ANDREY BORGES DE MENDONÇA, “Nova Reforma do Código de Processo Penal”, p. 260/264, 2ª ed., 2009, Método, v.g.).
É sempre importante rememorar, presente o contexto em análise, que a exigência de fiel observância das formas processuais estabelecidas em lei, notadamente quando instituídas em favor do acusado, representa, no âmbito das persecuções penais, uma inestimável garantia de liberdade, pois não se pode desconhecer, considerada a própria jurisprudência desta Suprema Corte, que o processo penal configura expressivo instrumento constitucional de salvaguarda das liberdades individuais do réu, contra quem não se presume provada qualquer acusação penal:

A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do ‘jus libertatis titularizado pelo réu.
A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido - e assim deve ser visto - como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu.
O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu - que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória -, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe, ao órgão acusador, o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público.
A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A cláusula ‘nulla poena sine judicio exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.
(RTJ 161/264-266, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Isso significa, portanto, que a estrita observância da forma processual representa garantia plena de liberdade e de respeito aos direitos e prerrogativas que o ordenamento positivo confere a qualquer pessoa sob persecução penal.
Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, em relação aos ora pacientes, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, o curso do Processo-crime nº 02/2009, ora em tramitação perante o Juízo da 203ª Zona Eleitoral de Viradouro/SP (Processo-crime nº 02/2009), sustando-se, inclusive, caso já proferida, a eficácia de eventual sentença penal condenatória.
Comunique-se, com urgência, o teor da presente decisão, com o encaminhamento da respectiva cópia, ao eminente Senhor Presidente do E. Tribunal Superior Eleitoral (HC 2825-59.2010.6.00.0000/SP) e ao MM. Juiz da 203ª Zona Eleitoral de Viradouro/SP (Processo-crime nº 02/2009).
Publique-se.
Brasília, 28 de outubro de 2011.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

*decisão publicada no DJe de 7.11.2011.

A prisão temporária não pode alcançar a automaticidade, descabendo determiná-la para fragilizar o acusado


HC N. 105.833-SP (STF)
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
PRISÃO TEMPORÁRIA – AUTOMATICIDADE. A prisão temporária não pode alcançar a automaticidade, descabendo determiná-la para fragilizar o acusado.
PRISÃO TEMPORÁRIA. Não serve à prisão temporária a suposição de o envolvido, nas investigações, vir a intimidar testemunhas.

Dano ambiental e nexo de causalidade - STF


Dano ambiental e nexo de causalidade
Em conclusão de julgamento, a 2ª Turma, por maioria, deferiu habeas corpus para determinar o trancamento de ação penal ajuizada contra proprietário de área localizada em parque estadual, denunciado por crime contra o meio ambiente. Na espécie, conforme escritura de compra e venda, o paciente adquirira gleba de terra na região e, no contrato estaria previsto o direito de os proprietários anteriores procederem à colheita do que fora por eles plantado. Ao verificar desmatamento naquela área de plantio, a fiscalização ambiental lavrara boletins de ocorrência que culminaram em ação civil pública contra o paciente pelos crimes dos artigos 38, 39, 40 e 48 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais). No STJ, reconhecera-se excesso acusatório com parcial concessão da ordem e delimitara-se a imputação ao crime do art. 40 da Lei 9.605/98. Ressaltou-se não ser possível que intervenções legislativas apanhassem realidades constituídas e as transformassem em práticas ilícitas. Asseverou-se que: a) o mencionado parque ambiental fora criado em data posterior à aquisição da propriedade; b) o plantio de mandioca seria preexistente à aquisição da propriedade; c) o paciente substituíra o mandiocal por gramíneas; d) o dano não adviera do plantio de gramíneas, mas da supressão da vegetação para o plantio daqueles tubérculos; e e) a área em questão seria pouco significativa. Destacou-se que, por restringir-se a imputação ao delito de dano, não se verificaria nexo de causalidade entre a conduta imputada ao paciente e o malefício ambiental por ele supostamente causado. Frisou-se que o laudo técnico apontara para a regeneração natural da área, com indicação de medidas simples para o afastamento do dano, que poderiam ser obtidas pelas vias administrativas e cíveis. Reajustou o voto o Min. Ayres Britto, relator. Vencida a Min. Ellen Gracie, que denegava a ordem.
HC 95154/SP, rel. Min. Ayres Britto, 27.3.2012. (HC-95154)

Súmula Vinculante nº 14 – Advogados – Acesso aos Autos – Reclamação – Possibilidade


Súmula Vinculante nº 14 – Advogados – Acesso aos Autos – Regime de Sigilo – Possibilidade. (Transcrições)


Rcl 12810 MC/BA*

RELATOR: Min. Celso de Mello

EMENTA: RECLAMAÇÃO. DESRESPEITO AO ENUNCIADO CONSTANTE DA SÚMULA VINCULANTE 14/STF. PERSECUÇÃO PENAL AINDA NA FASE DE INVESTIGAÇÃO POLICIAL. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO OU PELO RÉU. DIREITO DE DEFESA. COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONSTITUCIONAL. PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA PERSECUÇÃO PENAL (INQUÉRITO POLICIAL OU PROCESSO JUDICIAL) OU A ESTES REGULARMENTE APENSADOS. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- O sistema normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou pelo réu), o direito
de pleno acesso aos autos de persecução penal, mesmo que sujeita, em juízo ou fora dele, a regime de sigilo
(necessariamente excepcional), limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e formalmente
incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas, conseqüentemente, as informações e providências investigatórias
ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito ou processo judicial. Precedentes.
Doutrina.

DECISÃO: Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, ajuizada contra ato emanado da MMª. Juíza de Direito da Vara de Tóxicos e Acidentes de Veículos da comarca de Feira de Santana/BA.
Sustenta-se, na presente causa, que o ato reclamado em questão teria transgredido o enunciado da Súmula Vinculante nº 14, que possui o seguinte teor:

É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.” (grifei)

Busca-se, em síntese, na presente sede processual, o acesso da parte ora reclamante aos autos do procedimento penal nº 0014669-17.2011.805.0080, ainda em fase de investigação policial.
Sendo esse o contexto, passo a apreciar o pedido de medida liminar.
E, ao fazê-lo, observo que os elementos produzidos na presente sede reclamatória parecem evidenciar a ocorrência de transgressão ao enunciado da Súmula Vinculante nº 14/STF, revelando-se suficientes para justificar, na espécie, o acolhimento da pretensão cautelar deduzida pela parte ora reclamante.
Com efeito, e como tenho salientado em muitas decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, o presente caso põe em evidência, uma vez mais, situação impregnada de alto relevo jurídico-constitucional, consideradas as graves implicações que resultam de injustas restrições impostas ao exercício, em plenitude, do direito de defesa e à prática, pelo Advogado, das prerrogativas profissionais que lhe são inerentes (Lei nº 8.906/94, art. 7º, incisos XIII e XIV).
O Estatuto da Advocacia - ao dispor sobre o acesso do Advogado aos procedimentos estatais, inclusive àqueles que tramitem em regime de sigilo (hipótese em que se lhe exigirá a exibição do pertinente instrumento de mandato) – assegura-lhe, como típica prerrogativa de ordem profissional, o direito de examinar os autos, sempre em benefício de seu constituinte, e em ordem a viabilizar, quanto a este, o exercício do direito de conhecer os dados probatórios formalmente produzidos no âmbito da investigação penal, para que se possibilite a prática de direitos básicos de que também é titular aquele contra quem foi instaurada, pelo Poder Público, determinada persecução criminal.
Nem se diga, por absolutamente inaceitável, considerada a própria declaração constitucional de direitos, que a pessoa sob persecução penal (em juízo ou fora dele) mostrar-se-ia destituída de direitos e garantias. Esta Suprema Corte jamais poderia legitimar tal entendimento, pois a razão de ser do sistema de liberdades públicas vincula-se, em sua vocação protetiva, a amparar o cidadão contra eventuais excessos, abusos ou arbitrariedades emanados do aparelho estatal.
Não custa advertir, como já tive o ensejo de acentuar em decisão proferida no âmbito desta Suprema Corte (MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), que o respeito aos valores e princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado Democrático de Direito, longe de comprometer a eficácia das investigações penais, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pela Polícia Judiciária, pelo Ministério Público ou pelo próprio Poder Judiciário.
A pessoa contra quem se instaurou persecução penal – não importa se em juízo ou fora dele - não se despoja, mesmo que se cuide de simples indiciado, de sua condição de sujeito de determinados direitos e de senhor de garantias indisponíveis, cujo desrespeito só põe em evidência a censurável (e inaceitável) face arbitrária do Estado, a quem não se revela lícito desconhecer que os poderes de que dispõe devem conformar-se, necessariamente, ao que prescreve o ordenamento positivo da República.
Cabe relembrar, no ponto, por necessário, a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal em torno da matéria pertinente à posição jurídica que o indiciado – e, com maior razão, o próprio réu - ostenta em nosso sistema normativo, e que lhe reconhece direitos e garantias inteiramente oponíveis ao poder do Estado, por parte daquele que sofre a persecução penal:

INQUÉRITO POLICIAL - UNILATERALIDADE - A SITUAÇÃO JURÍDICA DO INDICIADO.
- O inquérito policial, que constitui instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado a subsidiar a atuação persecutória do Ministério Público, que é - enquanto ‘dominus litis’ - o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária.
A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.
O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.”
(RTJ 168/896-897, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Esse entendimento - que reflete a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal construída sob a égide da vigente Constituição - encontra apoio na lição de autores eminentes, que, não desconhecendo que o exercício do poder não autoriza a prática do arbítrio, enfatizam que, mesmo em procedimentos inquisitivos instaurados no plano da investigação policial, há direitos titularizados pelo indiciado, que simplesmente não podem ser ignorados pelo Estado.
Cabe referir, nesse sentido, o magistério de FAUZI HASSAN CHOUKE (“Garantias Constitucionais na Investigação Criminal”, p. 74, item n. 4.2, 1995, RT), de ADA PELLEGRINI GRINOVER (“A Polícia Civil e as Garantias Constitucionais de Liberdade”, “in” “A Polícia à Luz do Direito”, p. 17, 1991, RT), de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 383, 1993, Saraiva), de ROBERTO MAURÍCIO GENOFRE (“O Indiciado: de Objeto de Investigações a Sujeito de Direitos”, “in” “Justiça e Democracia”, vol. 1/181, item n. 4, 1996, RT), de PAULO FERNANDO SILVEIRA (“Devido Processo Legal - Due Process of Law”, p. 101, 1996, Del Rey), de ROMEU DE ALMEIDA SALLES JUNIOR (“Inquérito Policial e Ação Penal”, p. 60/61, item n. 48, 7ª ed., 1998, Saraiva) e de LUIZ CARLOS ROCHA (“Investigação Policial - Teoria e Prática”, p. 109, item n. 2, 1998, Saraiva), dentre outros.
Impende destacar, de outro lado, precisamente em face da circunstância de o indiciado ser, ele próprio, sujeito de direitos, que os Advogados por ele regularmente constituídos (como sucede no caso) têm direito de acesso aos autos da investigação (ou do processo) penal, ainda que em tramitação sob regime de sigilo, considerada a essencialidade do direito de defesa, que há de ser compreendido - enquanto prerrogativa indisponível assegurada pela Constituição da República - em perspectiva global e abrangente.
É certo, no entanto, em ocorrendo a hipótese excepcional de sigilo - e para que não se comprometa o sucesso das providências investigatórias em curso de execução (a significar, portanto, que se trata de providências ainda não formalmente incorporadas ao procedimento de investigação) -, que o acusado (e, até mesmo, o mero indiciado), por meio de Advogado por ele constituído, tem o direito de conhecer as informações “já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução das diligências em curso (...)” (RTJ 191/547-548, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei).
Vê-se, pois, que assiste, àquele sob persecução penal do Estado, o direito de acesso aos autos, por intermédio de seu Advogado, que poderá examiná-los, extrair cópias ou tomar apontamentos (Lei nº 8.906/94, art. 7º, XIV), observando-se, quanto a tal prerrogativa, orientação consagrada em decisões proferidas por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 90.232/AM, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - Inq 1.867/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 23.836/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.), mesmo quando a persecução estatal esteja sendo processada em caráter sigiloso, hipótese em que o Advogado do acusado, desde que por este constituído (como sucede na espécie), poderá ter acesso às peças que digam respeito à pessoa do seu cliente e que instrumentalizem prova já produzida nos autos, tal como esta Corte decidiu no julgamento do HC 82.354/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE (RTJ 191/547-548):

Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado - interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado, de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual - ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas - não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.
A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.
O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência, a autoridade policial, de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.” (grifei)

Esse mesmo entendimento foi por mim reiterado, quando do julgamento de pleito cautelar que apreciei em decisão assim ementada:

INQUÉRITO POLICIAL. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO.DIREITO DE DEFESA. COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONSTITUCIONAL. PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). OS ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILEGIAR O MISTÉRIO NEM COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO DO REGIME DE SIGILO, O EXERCÍCIO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS POR PARTE DAQUELE QUE SOFRE INVESTIGAÇÃO PENAL. CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA INVESTIGAÇÃO PENAL. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias plenamente oponíveis ao poder do Estado (RTJ 168/896-897). A unilateralidade da investigação penal não autoriza que se desrespeitem as garantias básicas de que se acha investido, mesmo na fase pré-processual, aquele que sofre, por parte do Estado, atos de persecução criminal.
- O sistema normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de persecução estatal), o direito de pleno acesso aos autos de investigação penal, mesmo que sujeita a regime de sigilo (necessariamente excepcional), limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas, conseqüentemente, as informações e providências investigatórias ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito. Precedentes. Doutrina.”
(HC 87.725-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 02/02/2007)

Os eminentes Advogados ALBERTO ZACHARIAS TORON e ALEXANDRA LEBELSON SZAFIR, em valiosa obra - que versa, dentre outros temas, aquele ora em análise (“Prerrogativas Profissionais do Advogado”, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora) -, examinaram, com precisão, a questão suscitada pela injusta recusa, ao Advogado investido de procuração (Lei nº 8.906/94, art. 7º, XIII), de acesso aos autos de inquérito policial ou de processo penal que tramitem, excepcionalmente, em regime de sigilo, valendo rememorar, a esse propósito, a seguinte passagem:

No que concerne ao inquérito policial há regra clara no Estatuto do Advogado que assegura o direito aos advogados de, mesmo sem procuração, ter acesso aos autos (art. 7º, inc. XIV) e que não é excepcionada pela disposição constante do § 1º do mesmo artigo que trata dos casos de sigilo. Certo é que o inciso XIV do art. 7º não fala a respeito dos inquéritos marcados pelo sigilo. Todavia, quando o sigilo tenha sido decretado, basta que se exija o instrumento procuratório para se viabilizar a vista dos autos do procedimento investigatório. Sim, porque inquéritos secretos não se compatibilizam com a garantia de o cidadão ter ao seu lado um profissional para assisti-lo, quer para permanecer calado, quer para não se auto-incriminar (CF, art. 5º, LXIII). Portanto, a presença do advogado no inquérito e, sobretudo, no flagrante não é de caráter afetivo ou emocional. Tem caráter profissional, efetivo, e não meramente simbólico. Isso, porém, só ocorrerá se o advogado puder ter acesso aos autos. Advogados cegos, ‘blind lawyers’, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer contra o indiciado.” (grifei)

Cumpre referir, ainda, que a colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o HC 88.190/RJ, Rel. Min.CEZAR PELUSO, reafirmou o entendimento anteriormente adotado por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 87.827/RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), em julgamento que restou consubstanciado em acórdão assim ementado:

ADVOGADO. Investigação sigilosa do Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do suspeito ou investigado. Intervenção nos autos. Elementos documentados. Acesso amplo. Assistência técnica ao cliente ou constituinte. Prerrogativa profissional garantida. Resguardo da eficácia das investigações em curso ou por fazer. Desnecessidade de constarem dos autos do procedimento investigatório. HC concedido. Inteligência do art. 5°, LXIII, da CF, art. 20 do CPP, art. 7º, XIV, da Lei nº 8.906/94, art. 16 do CPPM, e art. 26 da Lei nº 6.368/76. Precedentes. É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte.” (grifei)

Cabe assinalar, neste ponto, um outro aspecto relevante do tema ora em análise, considerados os elementos probatórios alegadamente já produzidos nos autos da persecução penal e, portanto, a estes já formalmente incorporados, como sucede, no caso ora em exame, com os autos referentes ao pedido de interceptação de comunicações telefônicas sob nº 0008464-69.2011.805.0080. Refiro-me ao postulado da comunhão da prova, cuja eficácia projeta-se e incide sobre todos os dados informativos, que, concernentes à “informatio delicti”, compõem o acervo probatório coligido pelas autoridades e agentes estatais.
Esse postulado assume inegável importância no plano das garantias de ordem jurídica reconhecidas ao investigado e ao réu, pois, como se sabe, o princípio da comunhão (ou da aquisição) da prova assegura, ao que sofre persecução penal – ainda que submetida esta ao regime de sigilo -, o direito de conhecer os elementos de informação já existentes nos autos e cujo teor possa ser, eventualmente, de seu interesse, quer para efeito de exercício da auto-defesa, quer para desempenho da defesa técnica.
É que a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecutório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de persecução penal por parte do Estado.
Essa compreensão do temacabe ressaltar - é revelada por autorizado magistério doutrinário (ADALBERTO JOSÉ Q. T. DE CAMARGO ARANHA, “Da Prova no Processo Penal”, p. 31, item n. 3, 3ª ed., 1994, Saraiva; DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, “O Princípio da Comunhão da Prova”, “in” Revista Dialética de Direito Processual (RDPP), vol. 31/19-33, 2005; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 259, item n. 17.7, 7ª ed., 2001, Saraiva; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Prova Penal”, p. 31, item n. 2, 2ª ed., 2003, Lumen Juris, v.g.), valendo referir, por extremamente relevante, a lição expendida por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“O Juiz e a Prova”, “in” Revista de Processo, nº 35, Ano IX, abril/junho de 1984, p. 178/184):

E basta pensar no seguinte: se a prova for feita, pouco importa a sua origem. (...). A prova do fato não aumenta nem diminui de valor segundo haja sido trazida por aquele a quem cabia o ônus, ou pelo adversário. A isso se chama oprincípio da comunhão da prova’: a prova, depois de feita, é comum, não pertence a quem a faz, pertence ao processo; pouco importa sua fonte, pouco importa sua proveniência. (...).” (grifei)

Cumpre rememorar, ainda, ante a sua inteira pertinência, o magistério de PAULO RANGEL (“Direito Processual Penal”, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8ª ed., 2004, Lumen Juris):

A palavra comunhão vem do latim ‘communione’, que significa ato ou efeito de comungar, participação em comum em crenças, idéias ou interesses. Referindo-se à prova, portanto, quer-se dizer que a mesma, uma vez no processo, pertence a todos os sujeitos processuais (partes e juiz), não obstante ter sido levada apenas por um deles. (...).
O princípio da comunhão da prova é um consectário lógico dos princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico processual, pois as partes, a fim de estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem mão do meio de prova levado para os autos.
(...) Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico-processual fazem com que as provas carreadas para os autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da comunhão das provas.” (grifei)

É por tal razão que se impõe assegurar, aos Advogados, ora reclamantes, o acesso a toda informação já produzida e formalmente incorporada aos autos da persecução penal em causa, mesmo porque o conhecimento do acervo probatório pode revestir-se de particular relevo para a própria elaboração da defesa técnica por parte dos ora reclamantes.
É fundamental, no entanto, para o efeito referido nesta decisão, que os elementos probatórios já tenham sido formalmente produzidos nos autos da persecução penal.
O que não se revela constitucionalmente lícito, segundo entendo, é impedir que a indiciada tenha pleno acesso aos dados probatórios, que, já documentados nos autos (porque a estes formalmente incorporados ou a eles regularmente apensados), veiculam informações que possam revelar-se úteis ao conhecimento da verdade real e à condução da defesa da pessoa investigada (como no caso) ou processada pelo Estado, ainda que o procedimento de persecução penal esteja submetido a regime de sigilo.
Sendo assim, em face das razões expostas, e em juízo de estrita delibação, defiro o pedido de medida cautelar, em ordem a garantir, à parte reclamante, o direito de acesso aos autos do procedimento penal nº 0014669-17-2011.805.0080 (e aos documentos a eles já incorporados), em trâmite perante a Vara de Tóxicos e Acidentes de Veículos da comarca de Feira de Santana/BA.
Observo, por necessário, que este provimento jurisdicional assegura, à parte ora reclamante, o direito de acesso, exclusivamente, às informações, aos documentos, às decisões e às provas penais já formalmente introduzidos nos autos do procedimento investigatório em questão ou a estes já apensados, caso se ache concluído o respectivo procedimento probatório, como sucede com os autos referentes ao pedido de interceptação de comunicações telefônicas sob nº 0008464-69.2011.805.0080.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão, para cumprimento integral, à MMª. Juíza de Direito da Vara de Tóxicos e Acidentes de Veículos da comarca de Feira de Santana/BA.
2. Corrija-se a autuação, para que desta constem, como reclamantes, ** e **, excluindo-se a referência feita a **.
Publique-se.
Brasília, 28 de outubro de 2011.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

* decisão publicada no DJe de 7.11.2011
** nomes suprimidos pelo Informativo

Trabalho externo autônomo - Possibilidade - STF


HC N. 110.605-RS (STF)
RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
EMENTA: HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. AUTORIZAÇÃO PARA O TRABALHO EXTERNO AUTÔNOMO. REQUISITOS DO ART. 37 DA LEP. NECESSIDADE DE INDICAÇÃO PRECISA DO LOCAL E HORÁRIO DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM CONCEDIDA.
I – Não se mostra razoável exigir do reeducando outro requisito além dos critérios objetivos e subjetivos previstos na Lei de Execução Penal, especialmente se este já comprovou sua condição de microempresário regularmente estabelecido.
II – O trabalho externo do paciente é de suma relevância no processo de sua reeducação e ressocialização, elevando-se à condição de instrumento de afirmação de sua dignidade.
III – No caso sob análise, a apresentação pelo paciente de registro como microempresário, indicando o número do CNPJ e o seu endereço comercial, em documento no qual a sua atividade está descrita como “instalação e manutenção elétrica”, é circunstância suficiente para a concessão do benefício pleiteado.
IV - Na hipótese, a comprovação das atividades exercidas poderá ser feita por meio de notas fiscais de prestação de serviço, recibos, orçamentos e outros documentos semelhantes.
V – Ordem concedida para permitir ao paciente exercer trabalho externo, nas condições a serem estabelecidas pelo Juízo da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Bagé/RS.

Liberdade de expressão e Lei de Tóxicos


ADI N. 4.274-DF (STF)
RELATOR: MIN. AYRES BRITTO
EMENTA: ACÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE “INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO” DO § 2º DO ART. 33 DA LEI Nº 11.343/2006, CRIMINALIZADOR DAS CONDUTAS DE “INDUZIR, INSTIGAR OU AUXILIAR ALGUÉM AO USO INDEVIDO DE DROGA”.
1. Cabível o pedido de “interpretação conforme à Constituição” de preceito legal portador de mais de um sentido, dando-se que ao menos um deles é contrário à Constituição Federal.
2. A utilização do § 3º do art. 33 da Lei 11.343/2006 como fundamento para a proibição judicial de eventos públicos de defesa da legalização ou da descriminalização do uso de entorpecentes ofende o direito fundamental de reunião, expressamente outorgado pelo inciso XVI do art. 5º da Carta Magna. Regular exercício das liberdades constitucionais de manifestação de pensamento e expressão, em sentido lato, além do direito de acesso à informação (incisos IV, IX e XIV do art. 5º da Constituição Republicana, respectivamente).
3. Nenhuma lei, seja ela civil ou penal, pode blindar-se contra a discussão do seu próprio conteúdo. Nem mesmo a Constituição está a salvo da ampla, livre e aberta discussão dos seus defeitos e das suas virtudes, desde que sejam obedecidas as condicionantes ao direito constitucional de reunião, tal como a prévia comunicação às autoridades competentes.
4. Impossibilidade de restrição ao direito fundamental de reunião que não se contenha nas duas situações excepcionais que a própria Constituição prevê: o estado de defesa e o estado de sítio (art. 136, § 1º, inciso I, alínea “a”, e art. 139, inciso IV).
5. Ação direta julgada procedente para dar ao § 2º do art. 33 da Lei  11.343/2006 “interpretação conforme à Constituição” e dele excluir qualquer significado que enseje a proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do uso de drogas ou de qualquer substância que leve o ser humano ao entorpecimento episódico, ou então viciado, das suas faculdades psicofísicas.

Direito constitucional de recorrer em liberdade - STF


Condenação penal - Direito de recorrer em liberdade - Prisão cautelar – Excepcionalidade (Transcrições)

HC 112071 MC/SP*

RELATOR: Min. Celso de Mello

EMENTA: DENEGAÇÃO DE LIMINAR EM PROCESSO DE “HABEAS CORPUSINSTAURADO PERANTE O E. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA POR TRIBUNAL DE JUSTIÇA MEDIANTE UTILIZAÇÃO DE FÓRMULA GENÉRICA DESPROVIDA DE FUNDAMENTAÇÃO E, POR ISSO MESMO, CONFLITANTE TANTO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUANTO COM A NORMA INSCRITA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART.  387 DO CPP. POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DA RESTRIÇÃO FUNDADA NA SÚMULA 691/STF. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO, EM CADA CASO OCORRENTE, DOS PRESSUPOSTOS DE CAUTELARIDADE JUSTIFICADORES DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO PROCESSUAL, MESMO TRATANDO-SE DE RÉUS CONDENADOS, EM CUJO FAVOR MILITA, COMO REGRA GERAL, O DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- Para efeito de legitimação da prisão cautelar, ainda que motivada por condenação recorrível, exigir-se-á, sempre, considerada a inconstitucionalidade da execução penal provisória, a observância de certos requisitos, hoje estabelecidos em sede legal (CPP, art. 387, parágrafo único, acrescentado pela Lei nº 11.719/2008), sem os quais não terá validade jurídica alguma esse ato excepcional de constrição da liberdade pessoal do sentenciado, sendo destituída de eficácia, por arbitrária, a fórmula genérica (“Expeça-se mandado de prisão”) utilizada por Cortes judiciárias. Doutrina. Precedentes.
- A denegação, ao sentenciado, do direito de recorrer (ou de permanecer) em liberdade depende, para legitimar-se, da ocorrência concreta de qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP, a significar, portanto, que, inexistindo fundamento autorizador da privação meramente processual da liberdade do réu, esse ato de constrição reputar-se-á ilegal, porque dele ausente a necessária observância da exigência de cautelaridade. Precedentes.
- A prisão processual, de ordem meramente cautelar, ainda que fundada em condenação penal recorrível, tem como requisito legitimador a existência de situação de real necessidade, apta a ensejar, ao Estado, quando efetivamente configurada, a adoção - sempre excepcional - dessa medida constritiva de caráter pessoal, a evidenciar que se mostra insuficiente, para tal fim, a exclusiva motivação subjacente ao decreto de condenação, cujos elementos não se confundem nem satisfazem a exigência de específica demonstração da ocorrência, em cada caso, dos pressupostos de cautelaridade inerentes à prisão meramente processual.

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão proferida pelo eminente Ministro-Presidente do E. Superior Tribunal de Justiça, que, em sede de outra ação de “habeas corpusainda em curso naquela Corte (HC 231.250/SP), denegou medida liminar que lhe havia sido requerida em favor dos ora pacientes.
Registro que o pedido de reconsideração formulado em favor dos ora pacientes foi indeferido pela eminente Senhora Ministra Relatora do processo de “habeas corpus” em questão, ora em andamento perante o E. Superior Tribunal de Justiça.
Presente tal contexto, impende verificar, desde logo, se a situação processual versada nestes autos justifica, ou não, o afastamento, sempre excepcional, da Súmula 691/STF.
Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ainda que em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, “hic et nunc”, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta ilegalidade (HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 89.025-MC-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 94.016/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 96.095/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 96.483/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Parece-me que a situação exposta nesta impetração ajustar-se-ia às hipóteses que autorizam a superação do obstáculo representado pela Súmula 691/STF.
Por tal razão, e sem prejuízo do ulterior reexame da questão, passo, em conseqüência, a examinar a postulação cautelar ora deduzida nesta sede processual.
E, ao fazê-lo, observo que o exame dos elementos produzidos nestes autos, notadamente do que se contém no acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, parece evidenciar que a prisão cautelar dos ora pacientes não se ajustaria aos padrões jurisprudenciais que esta Suprema Corte firmou na análise do tema.
Constata-se, pela análise do v. acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que simplesmente não , nele, qualquer motivação justificadora da concreta necessidade de decretação da prisão cautelar dos ora pacientes.
Na realidade, o E. Tribunal de Justiça local limitou-se, no acórdão em referência, a determinar, “tout court”, sem qualquer fundamentação (por mínima que fosse), a expedição de mandados de prisão contra os pacientes em questão.
Vê-se, no caso ora em exame, que o Tribunal de Justiça local claramente admitiu, ainda na pendência de recurso ordinário cabível na espécie (embargos de declaração), aquilo que a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal tem expressamente repelido: a execução provisória da condenação penal.
Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal não reconhece a possibilidade constitucional de execução provisória da pena, por entender que orientação em sentido diverso transgrediria, de modo frontal, a presunção constitucional de inocência.
É por tal motivo que, em situações como a que ora se registra nesta causa, o Supremo Tribunal Federal tem garantido, ao condenado, até mesmo em sede cautelar, o direito de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos interpostos, ainda que destituídos de eficácia suspensiva (HC 85.710/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 88.276/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 88.460/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 89.952/MG, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, v.g.), valendo referir, por relevante, que ambas as Turmas desta Suprema Corte (HC 85.877/PE, Rel. Min. GILMAR MENDES, e HC 86.328/RS, Rel. Min. EROS GRAU) asseguraram, inclusive de ofício, a diversos pacientes, o direito de recorrer em liberdade.
Não obstante essa diretriz jurisprudencial, mostra-se viável, consoante reconhece esta Suprema Corte, a possibilidade de convivência entre os diversos instrumentos de tutela cautelar penal postos à disposição do Poder Público, de um lado, e a presunção de inocência proclamada pela Constituição da República (CF, art. 5º, LVII) e pelo Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 7º, nº 2), de outro.
Para que se legitime a prisão cautelar, no entanto, impõe-se que os órgãos judiciários competentes tenham presente a advertência do Supremo Tribunal Federal no sentido da estrita observância de determinadas exigências (RTJ 134/798), em especial a demonstração - apoiada em decisão impregnada de fundamentação substancial - que evidencie a imprescindibilidade, em cada situação ocorrente, da adoção da medida constritiva do “status libertatis” do indiciado/réu, sob pena de caracterização de ilegalidade ou de abuso de poder na decretação da prisão meramente processual (RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 80.892/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Com efeito, proferida sentença penal condenatória, nada impede que o Poder Judiciário, a despeito do caráter recorrível desse ato sentencial, decrete, excepcionalmente, a prisão cautelar do réu condenado, desde que existam, no entanto, quanto a ela, reais motivos evidenciadores da necessidade de adoção dessa extraordinária medida constritiva de ordem pessoal (RTJ 193/936, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 71.644/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Para efeito de legitimação da prisão cautelar motivada por condenação recorrível (como sucede na espécie), exigir-se-á, sempre, considerada a inconstitucionalidade da execução penal provisória, a observância de certos requisitos, hoje estabelecidos em sede legal (CPP, art. 387, parágrafo único, acrescentado pela Lei nº 11.719/2008), sem os quais não terá validade jurídica alguma esse ato de constrição da liberdade pessoal do sentenciado, sendo destituída de eficácia a fórmula genérica (“Expeçam-se mandados de prisão”) utilizada pelo Tribunal de Justiça local, consoante adverte o magistério da doutrina (ROBERTO DELMANTO JÚNIOR, “As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração”, p.  202/234, itens ns. 6 e 7, 2ª ed., 2001, Renovar; LUIZ FLÁVIO GOMES, “Direito de Apelar em Liberdade”, p. 104, item n. 3, 2ª ed., 1996, RT; PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN/JORGE ASSAF MALULY, “Curso de Processo Penal”, p. 163/164, item n. 7.1.5, 3ª ed., 2005, Forense; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Tutela Cautelar no Processo Penal”, p. 286/301, item n. 4.4.3.1.5, 2005, Lumen Juris; ROGERIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Prisão Cautelar”, 2006, Lumen Juris, v.g.), em lições que têm merecido, no tema, o beneplácito da jurisprudência desta Corte Suprema.
O exame da decisão ora questionada - que decretou, sem qualquer fundamentação, a prisão dos pacientes, não obstante tenham estes a possibilidade de recorrer do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça local - revela que esse ato decisório não se ajusta ao magistério jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte, pois - insista-se - a denegação, ao sentenciado, do direito de recorrer (ou de permanecer) em liberdade depende, para legitimar-se, da ocorrência concreta de qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP (RTJ 195/603, Rel. Min. GILMAR MENDES - HC 84.434/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES - HC 86.164/RO, Rel. Min. AYRES BRITTO, v.g.), a significar, portanto, que, inexistindo fundamento autorizador da privação meramente processual da liberdade do réu, esse ato de constrição reputar-se-á ilegal, porque destituído, em referido contexto, da necessária cautelaridade (RTJ 193/936):

“(...) PRISÃO CAUTELARCARÁTER EXCEPCIONAL.
- A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade.
A prisão processual, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu.
- A questão da decretabilidade da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Doutrina. Precedentes.”
(HC 89.754/BA, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Em suma: a prisão processual, de ordem meramente cautelar, ainda que fundada em condenação penal recorrível, tem como requisito legitimador a existência de situação de real necessidade, apta a ensejar, ao Estado, quando efetivamente configurada, a adoção - sempre excepcional - dessa medida constritiva de caráter pessoal, a significar que se mostra insuficiente, para tal fim, a exclusiva motivação subjacente ao decreto de condenação, cujos elementos não se confundem nem satisfazem a exigência de específica demonstração da ocorrência, em cada caso, dos pressupostos de cautelaridade inerentes à prisão meramente processual.
Demais disso, se os ora pacientes, como no caso, estavam em liberdade, havendo dela sido privados apenas com o advento do acórdão condenatório emanado da E. Corte judiciária paulista, a prisão contra eles decretada - embora fundada em condenação penal recorrível (o que lhe atribui índole eminentemente cautelar) - somente se justificaria, se, motivada por fato posterior, este se ajustasse, concretamente, a qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP, circunstância esta que não se demonstrou ocorrente na espécie, pois, repita-se, a decisão do Tribunal de Justiça local apresenta-se despojada de qualquer fundamentação.
Todas as razões que venho de referir justificam a superação da restrição fundada na Súmula 691/STF, eis que a denegação da liminar aos pacientes, por ilustre Ministro do E. Superior Tribunal de Justiça - e presente o contexto em exame -, revela-se em conflito com a jurisprudência que esta Suprema Corte firmou na matéria, o que autoriza a apreciação do presente “writ”.
Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para, até final julgamento desta ação de “habeas corpus”, suspender, cautelarmente, a eficácia das ordens de prisão expedidas, contra os ora pacientes, nos autos da Apelação Criminal nº 0037767-54.2002.8.26.0050, julgada pela 5ª Câmara de Direito Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Processo-crime nº 1645/02, que tramitou perante a 29ª Vara Criminal da comarca de São Paulo/SP).
Caso os pacientes tenham sofrido prisão em decorrência do acórdão em questão (Apelação Criminal nº 0037767-54.2002.8.26.0050 - 5ª Câmara de Direito Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), deverão ser postos, imediatamente, em liberdade, se por al não estiverem presos.
2. Comunique-se, com urgência, encaminhando-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 231.250/SP), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação Criminal nº 0037767-54.2002.8.26.0050) e ao MM. Juiz de Direito da 29ª Vara Criminal da comarca de São Paulo/SP (Processo-crime nº 1645/02).
Publique-se.
Brasília, 27 de fevereiro de 2012.

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

*decisão publicada no DJe de 1º.3.2012.

Tempestividade de recurso em sede de agravo regimental - possibilidade


HC N. 108.638-SP (STF)
RELATOR: MIN. JOAQUIM BARBOSA
EMENTA: Habeas Corpus. Tempestividade recursal. Suspensão de expediente forense no juízo de origem. Causa legal de prorrogação do prazo recursal. Interposição do recurso no termo prorrogado. Prova da causa de prorrogação juntada apenas em sede de agravo regimental. Admissibilidade. Nova orientação jurisprudencial firmada pelo Plenário desta Corte. Ordem concedida.
“Pode a parte fazer eficazmente(...), em agravo regimental, prova de causa local de prorrogação do prazo de interposição e da consequente tempestividade de recurso” (AgRg no RE 626.358/PE, rel. min. Cezar Peluso, DJe nº 66, divulgado em 30.03.2012).
Ordem concedida para que o Superior Tribunal de Justiça conheça do Agravo de Instrumento nº 1.252.005/SP e se pronuncie sobre o seu mérito.