Condenação penal - Direito de recorrer em liberdade -
Prisão cautelar – Excepcionalidade (Transcrições)
HC 112071 MC/SP*
RELATOR: Min. Celso de Mello
EMENTA: DENEGAÇÃO DE LIMINAR
EM PROCESSO DE “HABEAS CORPUS” INSTAURADO PERANTE O E.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRISÃO CAUTELAR DECRETADA
POR TRIBUNAL DE JUSTIÇA MEDIANTE UTILIZAÇÃO DE FÓRMULA GENÉRICA
DESPROVIDA DE FUNDAMENTAÇÃO E, POR ISSO
MESMO, CONFLITANTE TANTO COM A JURISPRUDÊNCIA
DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUANTO COM A NORMA INSCRITA NO
PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 387 DO CPP. POSSIBILIDADE DE
SUPERAÇÃO DA RESTRIÇÃO FUNDADA NA SÚMULA 691/STF. NECESSIDADE
DE DEMONSTRAÇÃO, EM CADA CASO OCORRENTE, DOS
PRESSUPOSTOS DE CAUTELARIDADE JUSTIFICADORES DA
DECRETAÇÃO DA PRISÃO PROCESSUAL, MESMO TRATANDO-SE DE
RÉUS CONDENADOS, EM CUJO FAVOR MILITA, COMO REGRA
GERAL, O DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. PRECEDENTES.
MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- Para efeito de legitimação da prisão cautelar, ainda
que motivada por condenação recorrível, exigir-se-á,
sempre, considerada a inconstitucionalidade
da execução penal provisória, a observância de
certos requisitos, hoje estabelecidos em sede
legal (CPP, art. 387, parágrafo único, acrescentado
pela Lei nº 11.719/2008), sem os quais não terá
validade jurídica alguma esse ato excepcional
de constrição da liberdade pessoal do sentenciado, sendo destituída de
eficácia, por arbitrária, a fórmula genérica (“Expeça-se
mandado de prisão”) utilizada por Cortes judiciárias. Doutrina.
Precedentes.
- A denegação, ao sentenciado, do
direito de recorrer (ou de permanecer) em liberdade depende,
para legitimar-se, da ocorrência concreta de
qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP, a
significar, portanto, que, inexistindo fundamento
autorizador da privação meramente processual
da liberdade do réu, esse ato de constrição
reputar-se-á ilegal, porque dele ausente a
necessária observância da exigência de cautelaridade.
Precedentes.
- A prisão processual, de ordem meramente
cautelar, ainda que fundada em condenação penal
recorrível, tem como requisito legitimador a
existência de situação de real necessidade, apta
a ensejar, ao Estado, quando efetivamente configurada, a
adoção - sempre excepcional - dessa medida constritiva
de caráter pessoal, a evidenciar que se mostra insuficiente,
para tal fim, a exclusiva motivação subjacente
ao decreto de condenação, cujos elementos não se confundem nem
satisfazem a exigência de específica demonstração da ocorrência, em
cada caso, dos pressupostos de cautelaridade
inerentes à prisão meramente processual.
DECISÃO: Trata-se
de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado
contra decisão proferida pelo eminente Ministro-Presidente do E.
Superior Tribunal de Justiça, que, em sede de outra ação de “habeas
corpus” ainda em curso naquela Corte (HC 231.250/SP),
denegou medida liminar que lhe havia sido requerida em favor dos
ora pacientes.
Registro que o pedido de reconsideração
formulado em favor dos ora pacientes foi indeferido pela eminente
Senhora Ministra Relatora do processo de “habeas corpus” em questão, ora
em andamento perante o E. Superior Tribunal de Justiça.
Presente tal contexto, impende verificar, desde
logo, se a situação processual versada nestes autos justifica,
ou não, o afastamento, sempre excepcional, da
Súmula 691/STF.
Como se sabe, o Supremo Tribunal
Federal, ainda que em caráter extraordinário, tem admitido
o afastamento, “hic et nunc”, da Súmula 691/STF, em
hipóteses nas quais a decisão questionada divirja da
jurisprudência predominante nesta Corte ou, então, veicule
situações configuradoras de abuso de poder ou de manifesta
ilegalidade (HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 86.634-MC/RJ,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS
VELLOSO – HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 89.025-MC-AgR/SP,
Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA - HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO
- HC 94.016/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 96.095/SP,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 96.483/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Parece-me que a situação exposta nesta
impetração ajustar-se-ia às hipóteses que autorizam
a superação do obstáculo representado pela Súmula 691/STF.
Por tal razão, e sem
prejuízo do ulterior reexame da questão, passo, em
conseqüência, a examinar a postulação cautelar ora
deduzida nesta sede processual.
E, ao fazê-lo, observo
que o exame dos elementos produzidos
nestes autos, notadamente do que se contém no acórdão emanado
do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, parece evidenciar
que a prisão cautelar dos ora pacientes não se ajustaria
aos padrões jurisprudenciais que esta Suprema Corte firmou na
análise do tema.
Constata-se, pela análise do v. acórdão emanado
do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que simplesmente
não há, nele, qualquer motivação
justificadora da concreta necessidade
de decretação da prisão cautelar dos ora pacientes.
Na realidade, o E. Tribunal de
Justiça local limitou-se, no acórdão em referência, a
determinar, “tout court”, sem qualquer
fundamentação (por mínima que fosse),
a expedição de mandados de prisão contra os
pacientes em questão.
Vê-se, no caso ora em exame, que o Tribunal de Justiça
local claramente admitiu, ainda na pendência
de recurso ordinário cabível na espécie (embargos de declaração),
aquilo que a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal
Federal tem expressamente repelido: a
execução provisória da condenação penal.
Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal não
reconhece a possibilidade constitucional de execução provisória
da pena, por entender que orientação em sentido diverso transgrediria,
de modo frontal, a presunção constitucional de inocência.
É por tal motivo
que, em situações como a que ora se registra nesta causa, o Supremo Tribunal
Federal tem garantido, ao condenado, até
mesmo em sede cautelar,
o direito de aguardar em
liberdade o julgamento dos recursos interpostos, ainda
que destituídos de eficácia suspensiva (HC
85.710/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 88.276/RS,
Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 88.460/SP, Rel. Min.
MARCO AURÉLIO - HC 89.952/MG, Rel. Min. JOAQUIM
BARBOSA, v.g.), valendo referir, por
relevante, que ambas as Turmas
desta Suprema Corte (HC 85.877/PE, Rel. Min. GILMAR
MENDES, e HC 86.328/RS, Rel. Min. EROS GRAU) já
asseguraram, inclusive de ofício,
a diversos pacientes, o direito de recorrer em liberdade.
Não obstante essa diretriz
jurisprudencial, mostra-se viável, consoante reconhece
esta Suprema Corte, a possibilidade de convivência entre
os diversos instrumentos de tutela cautelar penal postos à disposição
do Poder Público, de um lado, e
a presunção de inocência proclamada pela Constituição da República (CF,
art. 5º, LVII) e pelo Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 7º,
nº 2), de outro.
Para que se legitime
a prisão cautelar, no entanto, impõe-se que os
órgãos judiciários competentes tenham presente a advertência do Supremo
Tribunal Federal no sentido da estrita observância
de determinadas exigências (RTJ
134/798), em especial a demonstração - apoiada
em decisão impregnada de fundamentação substancial - que evidencie
a imprescindibilidade, em cada situação ocorrente, da
adoção da medida constritiva do “status libertatis” do
indiciado/réu, sob pena de caracterização
de ilegalidade ou de abuso de poder na decretação
da prisão meramente processual (RTJ 180/262-264,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 80.892/RJ, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, v.g.).
Com efeito, proferida sentença penal condenatória,
nada impede que o Poder Judiciário, a
despeito do caráter recorrível desse ato sentencial, decrete,
excepcionalmente, a prisão cautelar
do réu condenado, desde que existam,
no entanto, quanto a ela, reais motivos
evidenciadores da necessidade de adoção dessa
extraordinária medida constritiva de ordem pessoal (RTJ 193/936,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 71.644/MG, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, v.g.).
Para efeito de legitimação da prisão cautelar motivada
por condenação recorrível (como sucede na espécie),
exigir-se-á, sempre, considerada a inconstitucionalidade
da execução penal provisória, a observância de
certos requisitos, hoje estabelecidos
em sede legal (CPP, art. 387, parágrafo único, acrescentado
pela Lei nº 11.719/2008), sem os quais não terá
validade jurídica alguma esse ato de constrição da liberdade
pessoal do sentenciado, sendo destituída de
eficácia a fórmula genérica (“Expeçam-se
mandados de prisão”) utilizada pelo Tribunal de Justiça local, consoante
adverte o magistério da doutrina (ROBERTO DELMANTO
JÚNIOR, “As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração”,
p. 202/234, itens ns. 6 e 7, 2ª ed., 2001, Renovar; LUIZ
FLÁVIO GOMES, “Direito de Apelar em Liberdade”, p. 104, item n. 3, 2ª
ed., 1996, RT; PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN/JORGE ASSAF MALULY, “Curso de
Processo Penal”, p. 163/164, item n. 7.1.5, 3ª ed., 2005, Forense;
MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Tutela Cautelar no Processo Penal”,
p. 286/301, item n. 4.4.3.1.5, 2005, Lumen Juris; ROGERIO SCHIETTI MACHADO
CRUZ, “Prisão Cautelar”, 2006, Lumen Juris, v.g.), em
lições que têm merecido,
no tema, o beneplácito da jurisprudência desta
Corte Suprema.
O exame da decisão ora questionada -
que decretou, sem qualquer
fundamentação, a prisão dos pacientes, não obstante
tenham estes a possibilidade de recorrer do acórdão proferido pelo Tribunal
de Justiça local - revela que esse ato decisório não
se ajusta ao magistério jurisprudencial prevalecente
nesta Suprema Corte, pois - insista-se - a denegação,
ao sentenciado, do direito de recorrer (ou
de permanecer) em liberdade depende, para legitimar-se, da
ocorrência concreta de qualquer das hipóteses referidas
no art. 312 do CPP (RTJ 195/603, Rel. Min.
GILMAR MENDES - HC 84.434/SP, Rel. Min. GILMAR
MENDES - HC 86.164/RO, Rel. Min. AYRES BRITTO,
v.g.), a significar, portanto, que, inexistindo
fundamento autorizador da privação meramente processual da
liberdade do réu, esse ato de constrição
reputar-se-á ilegal, porque destituído, em
referido contexto, da necessária cautelaridade
(RTJ 193/936):
“(...)
PRISÃO CAUTELAR – CARÁTER
EXCEPCIONAL.
- A privação cautelar da liberdade individual reveste-se
de caráter excepcional, somente
devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade.
A prisão processual, para legitimar-se em face de nosso
sistema jurídico, impõe - além da
satisfação dos pressupostos a que se refere o
art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício
suficiente de autoria) - que se evidenciem, com fundamento
em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do
indiciado ou do réu.
- A questão da decretabilidade
da prisão cautelar. Possibilidade
excepcional, desde que satisfeitos
os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da
verificação concreta,
em cada caso, da imprescindibilidade
da adoção dessa medida extraordinária. Doutrina. Precedentes.”
(HC 89.754/BA,
Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Em suma: a
prisão processual, de ordem meramente
cautelar, ainda que fundada em condenação penal
recorrível, tem como requisito legitimador
a existência de situação de real necessidade,
apta a ensejar, ao Estado, quando efetivamente
configurada, a adoção - sempre excepcional -
dessa medida constritiva de caráter pessoal, a significar que
se mostra insuficiente, para
tal fim, a exclusiva motivação subjacente ao
decreto de condenação, cujos elementos não se confundem nem
satisfazem a exigência de específica demonstração da ocorrência, em
cada caso, dos pressupostos de cautelaridade
inerentes à prisão meramente processual.
Demais disso, se os ora pacientes, como
no caso, estavam em liberdade, havendo dela
sido privados apenas com o advento do
acórdão condenatório emanado da E. Corte judiciária paulista, a prisão contra
eles decretada - embora fundada em condenação penal recorrível (o que
lhe atribui índole eminentemente cautelar) - somente se
justificaria, se, motivada por fato
posterior, este se ajustasse, concretamente,
a qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP, circunstância
esta que não se demonstrou
ocorrente na espécie, pois, repita-se, a
decisão do Tribunal de Justiça local apresenta-se despojada de
qualquer fundamentação.
Todas as razões que
venho de referir justificam a superação
da restrição fundada na Súmula 691/STF, eis que
a denegação da liminar aos pacientes, por ilustre Ministro do E. Superior
Tribunal de Justiça - e presente o contexto em
exame -, revela-se em conflito com
a jurisprudência que esta
Suprema Corte firmou na matéria, o que
autoriza a apreciação do presente “writ”.
Sendo assim, tendo presentes as
razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para,
até final julgamento desta ação de “habeas corpus”, suspender,
cautelarmente, a eficácia das ordens de
prisão expedidas, contra os ora pacientes, nos autos
da Apelação Criminal nº 0037767-54.2002.8.26.0050, julgada pela 5ª
Câmara de Direito Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Processo-crime
nº 1645/02, que tramitou perante a 29ª Vara
Criminal da comarca de São Paulo/SP).
Caso os pacientes já tenham sofrido
prisão em decorrência do acórdão em questão (Apelação
Criminal nº 0037767-54.2002.8.26.0050 - 5ª Câmara de Direito
Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), deverão
ser postos, imediatamente, em liberdade, se por al
não estiverem presos.
2. Comunique-se, com urgência, encaminhando-se
cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de
Justiça (HC 231.250/SP), ao E. Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo (Apelação Criminal nº
0037767-54.2002.8.26.0050) e ao MM. Juiz de Direito da 29ª Vara
Criminal da comarca de São Paulo/SP (Processo-crime nº 1645/02).
Publique-se.
Brasília, 27 de fevereiro de 2012.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
*decisão publicada no DJe de 1º.3.2012.
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