“Habeas Corpus” – Assistente do MP – Intervenção –
Inadmissibilidade (Transcrições)
HC
93.033/RJ*
RELATOR: Min. Celso de Mello
EMENTA: PROCESSO DE “HABEAS
CORPUS”. ASSISTENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERVENÇÃO.
INADMISSIBILIDADE. ATIVIDADE PROCESSUAL DESSE
TERCEIRO INTERVENIENTE SUJEITA A REGIME DE DIREITO ESTRITO.
ATUAÇÃO “AD COADJUVANDUM” QUE SE LIMITA, UNICAMENTE,
À PARTICIPAÇÃO EM PROCESSOS PENAIS DE NATUREZA CONDENATÓRIA. AÇÃO
DE “HABEAS CORPUS” COMO INSTRUMENTO DE ATIVAÇÃO DA
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES. ILEGITIMIDADE DO
INGRESSO, EM REFERIDA AÇÃO CONSTITUCIONAL, DO ASSISTENTE
DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. CONSEQÜENTE
DESENTRANHAMENTO DAS PEÇAS DOCUMENTAIS QUE ESSE TERCEIRO
INTERVENIENTE PRODUZIU NO PROCESSO DE “HABEAS CORPUS”.
DECISÃO: Trata-se
de “habeas corpus”, que, impetrado em favor de **, insurge-se
contra acórdão emanado do E. Superior Tribunal de Justiça, que, em
sede de idêntico processo, denegou, a esse mesmo paciente, o
“writ” constitucional lá ajuizado.
O assistente do Ministério Público, ingressando, indevidamente,
neste processo de “habeas corpus”, promoveu a juntada de
diversos documentos aos presentes autos.
Passo a apreciar esse incidente processual. E,
ao fazê-lo, determino o desentranhamento de referidas
peças documentais.
É que a intervenção do assistente do Ministério Público,
na presente causa, não se justifica, pois lhe falece
legitimidade para atuar no processo penal de “habeas corpus”.
Sabemos que, na ação de “habeas corpus”,
os sujeitos da relação processual penal, além do
órgão judiciário competente para julgá-la, são, apenas, (1)
o impetrante, (2) o paciente, (3) a
autoridade apontada como coatora e (4) o Ministério
Público.
Eles compõem o quadro dos elementos subjetivos essenciais
da relação jurídico-processual do “habeas corpus”. São, por
isso mesmo, os sujeitos processuais relevantes, principais
e imprescindíveis da ação de “habeas corpus”, não
obstante PONTES DE MIRANDA, em clássica monografia sobre o tema (“História
e Prática do Habeas Corpus”, tomo II, p. 23/24, § 105, 7ª ed., 1972,
Borsoi), e ao versar essa mesma questão, tenha
acrescentado, ao rol, a figura, por ele reputada essencial,
do detentor do paciente.
As vítimas de infração penal (desde que
perseguível mediante ação pública), ou aquelas pessoas mencionadas no
art. 268 do Código de Processo Penal, mesmo quando habilitadas como
assistentes da Acusação - o que só ocorre nos crimes de ação penal
pública (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal
Interpretado”, p. 594, item n. 268.6, 7ª ed., 2000, Atlas; EUGÊNIO PACELLI
DE OLIVEIRA e DOUGLAS FISCHER, “Comentários ao Código de Processo Penal e
sua Jurisprudência”, p. 573, item n. 268.1, 2ª ed., 2011, Lumen Juris;
EDILSON MOUGENOT BONFIM, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 518, 3ª
ed., 2010, Saraiva, v.g.) - não possuem qualidade nem
dispõem de legitimação, por ausência absoluta de previsão legal,
para intervir no procedimento judicial de “habeas corpus”.
Na realidade, a atividade processual do assistente
do Ministério Público não se revela ampla nem ilimitada,
especialmente no que concerne à sua participação no processo de “habeas
corpus”, eis que são de direito estrito as faculdades
jurídicas a ele outorgadas pelo ordenamento positivo (CPP, art.
271, “caput”).
O assistente do Ministério Público, bem por isso, somente
pode intervir “ad coadjuvandum” no processo penal condenatório (CPP,
art. 268), cabendo-lhe, no plano estrito das ações penais de condenação
- com as quais não se confunde a ação de “habeas corpus” (JOSÉ
FREDERICO MARQUES, “Elementos de Direito Processual Penal”, vol.
4/380-382, item n. 1.178, 1965, Forense) -, a prerrogativa de
propor meios de prova, de formular perguntas às
testemunhas, de participar do debate oral, de arrazoar os
recursos interpostos pelo “Parquet” ou por ele próprio, inclusive
extraordinariamente, nos casos dos arts. 584, § 1º, e 598 (CPP,
art. 271, “caput”, e Súmula 210/STF), e de requerer,
a partir de 04/07/2011, a decretação de prisão preventiva e
a imposição ou a substituição, por outras, de medidas
cautelares de natureza pessoal, quando descumpridas (CPP, art. 282,
§ 4º, e art. 311, na redação dada pela Lei nº
12.403/2011).
Vê-se, portanto,
que a atividade processual do assistente do Ministério Público sofre
explícitas limitações impostas pelo ordenamento
positivo, a cuja disciplina está ela juridicamente sujeita. É por
isso que o assistente do Ministério Público, mesmo nas
estritas hipóteses legais que justificam a sua intervenção
assistencial, “... não pode recorrer, extraordinariamente,
de decisão concessiva de ‘habeas corpus’” (Súmula
208/STF - grifei); não pode recorrer da sentença de
pronúncia (RTJ 49/344); não pode, ainda,
interpor recurso extraordinário, para o Supremo Tribunal Federal, de decisão que
absolve o condenado em revisão criminal (RTJ 70/500).
A inadmissibilidade
da participação do assistente do Ministério Público na relação processual instaurada
com a impetração do “habeas corpus” tem sido reconhecida por
prestigiosa doutrina (DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código de Processo Penal Anotado”,
p. 225, 23ª ed., 2009, Saraiva; EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA e DOUGLAS FISCHER,
“Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência”, p. 580,
2ª ed., 2011, Lumen Juris; MARCELLUS POLASTRI, “Manual de Processo Penal”,
p. 534, 5ª ed., 2010, Lumen Juris; REINALDO ROSSANO ALVES, “Direito
Processual Penal”, p. 178, 7ª ed., 2010, Impetus, v.g.), valendo
referir, quanto a esse tema, a lição de
JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”,
p. 595, 7ª ed., 1999, Atlas), para quem não se justifica
a intervenção do assistente do Ministério Público no processo de “habeas
corpus”:
“Prevendo a lei a
intervenção do assistente apenas na ‘ação pública’, ou seja,
ação condenatória, não se tem admitido, com razão,
sua participação nos processos de ‘habeas corpus’, em que não há
acusação nem contraditório.” (grifei)
Tem-se reconhecido, por isso mesmo, em
face da estrita disciplina que rege a atuação processual do
assistente do Ministério Público, a ilegitimidade de sua
intervenção no processo de “habeas corpus”, ainda quando
formalmente habilitado como terceiro interveniente. Essa posição tem
prevalecido na jurisprudência dos Tribunais (RT 376/230 -
RT 545/307 - RT 546/318 - RT 557/350 –
RT 598/325 – RT 685/351), inclusive na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ
56/693-695, Rel. Min. LUIZ
GALLOTTI – RTJ 126/154, Rel. Min. MOREIRA ALVES - HC 79.118-RS,
Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):
“No processo de
‘Habeas Corpus’ não é admissível a intervenção
do Assistente da Acusação, mesmo que este haja sido admitido
no processo da ação penal pública condenatória. Pela mesma razão
não tem direito a sustentar oralmente suas razões contrárias
à concessão do ‘writ’.
Precedentes.”
(HC 72.710/MG, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – grifei)
Também o E. Superior
Tribunal de Justiça - apreciando essa mesma questão – tem
perfilhado igual orientação, rejeitando a
possibilidade de intervenção do assistente do Ministério Público
no processo penal de “habeas corpus”:
“Processo penal. ‘Habeas
corpus’. Assistente de acusação. Inadmissibilidade.
Não cabe intervenção do
assistente da acusação no processo de ‘habeas corpus’,
visto como a função do assistente é restrita à parte acusatória (art. 271 do
CPP), enquanto que, no ‘habeas corpus’, onde não existe sequer
acusação, o Ministério Público não desempenha o papel de acusador, e sim de
fiscal da lei. Precedentes jurisprudenciais.”
(RT 666/352, Rel. Min.
ASSIS TOLEDO - grifei)
O assistente da acusação, portanto,
é um “extraneus” na formação da relação processual penal instaurada
com o ajuizamento da ação de “habeas corpus”. Não ostentando
a condição jurídico-formal de litigante nesse processo não condenatório,
não há como invocar a regra consubstanciada no art. 268 do
Código de Processo Penal, cuja incidência restringe-se ao plano das
ações penais condenatórias.
Não custa enfatizar, desse
modo, que, no processo penal de “habeas corpus”, o
assistente da acusação não é parte nem ostenta
a condição de litigante. Parte adversa ao impetrante/paciente
é o próprio Estado, cuja atuação administrativa ou jurisdicional enseja
o ajuizamento do “writ”. Compõem, destarte, a
relação processual penal instaurada com a impetração do “habeas
corpus”, como litigantes - e, portanto, como
destinatários da garantia do contraditório proclamada pelo art. 5º,
LV, da Constituição - o impetrante/paciente, de um lado, e
a autoridade coatora, de outro. Daí a observação de
JOSÉ FREDERICO MARQUES (op. cit., vol. 4/406), no sentido
de que o conteúdo do processo de “habeas corpus” “é uma lide
ou litígio entre o que sofre a coação ou ameaça ao direito de ir e vir, e o
Estado, representado pela autoridade coatora”.
O assistente da acusação, na realidade, é
terceiro formalmente estranho à discussão, que, sob a égide
do contraditório, se estabelece no processo penal de “habeas corpus”
entre o paciente e o Estado. Não há como se lhe aplicar a
garantia inscrita no art. 5º, LV, da Constituição, pois, não
sendo parte litigante nesse procedimento penal não condenatório,
não pode, o assistente do Ministério Público, pretender
o amparo da cláusula constitucional mencionada.
Cumpre assinalar, ainda, que pertence,
ao Estado, de modo absoluto, o direito de punir.
A circunstância de o Ministério Público poder intervir
no processo de “habeas corpus”, nas condições referidas na
legislação processual (CPP, art. 654, “caput”), não
traduz, só por si, situação jurídica invocável pelo assistente
da acusação para legitimar o seu ingresso na relação processual instaurada com
a impetração do “writ”. Tais situações são absolutamente
inassimiláveis.
O Ministério Público, no processo de “habeas corpus”
- que configura processo penal de caráter não condenatório
-, desempenha a típica função institucional de “custos
legis”. Ressalvada a hipótese legal de ser, ele próprio,
o impetrante do “writ” (situação inocorrente neste caso), o
Ministério Público atua como órgão interveniente, velando
pela correta aplicação das leis.
Daí o já haver sido proclamado que o Ministério Público, na
ação penal de “habeas corpus”, exerce, ordinariamente,
a função de “custos legis”. Em sendo assim, e “(...)
não havendo, no processo de habeas corpus, quem acuse, não se pode falar
em assistente do Ministério Público, pois tal assistência não diz com todas as
funções daquela Instituição, já que a interferência do particular na ação penal
pública é de conteúdo específico” (RT 590/359-361, 360,
TACRIM/SP, Rel. Juiz Adauto Suannes).
Em suma: o assistente da acusação não ostenta
a situação jurídica de parte nas ações de “habeas corpus”, cujos
sujeitos processuais, como já ressaltado, são, unicamente,
o impetrante, o paciente, a autoridade coatora, o Ministério Público e o
próprio Juiz.
Sendo assim, e em face das razões expostas, determino
a devolução, ao assistente do Ministério Público, da petição
protocolada sob nº 86555/2008-STF (fls. 115) e dos documentos que
a instruem (fls. 116/195), acompanhados de cópia da presente
decisão.
Publique-se.
Brasília, 1º de agosto de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
* decisão publicada no DJe de 8.8.2011
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