CPI – Limitações Jurídicas – Direitos e Garantias da
Pessoa Investigada -Advogados – Prerrogativas Profissionais
(Transcrições)
MS
30906 MC/DF*
RELATOR: Min. Celso de Mello
EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO.
SUBMISSÃO INCONDICIONAL DA CPI À AUTORIDADE DA CONSTITUIÇÃO
E DAS LEIS DA REPÚBLICA. EXIGÊNCIA INERENTE AO
ESTADO DE DIREITO FUNDADO EM BASES DEMOCRÁTICAS. DIREITOS
DAS PESSOAS (FÍSICAS E JURÍDICAS) E PRERROGATIVAS
PROFISSIONAIS DO ADVOGADO. DIREITO DO ADVOGADO AO
USO DA PALAVRA, MESMO NO ÂMBITO DE COMISSÃO PARLAMENTAR
DE INQUÉRITO. PRERROGATIVA DE PROTOCOLIZAR E DE VER
APRECIADAS, PELA CPI, PETIÇÕES FORMULADAS EM NOME DA PESSOA OU
DA ENTIDADE SOB INVESTIGAÇÃO. DIREITO DE ACESSO A DOCUMENTOS SOB
CLÁUSULA DE SIGILO, DESDE QUE JÁ INCORPORADOS
AOS AUTOS DO INQUÉRITO PARLAMENTAR. POSTULADO DA COMUNHÃO DA PROVA.
DOUTRINA CONSAGRADA NA SÚMULA VINCULANTE Nº 14/STF.
PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- A investigação parlamentar, por mais graves
que sejam os fatos pesquisados pela Comissão legislativa, não pode desviar-se
dos limites traçados pela Constituição nem transgredir as
garantias, que, decorrentes do sistema normativo,
foram atribuídas à generalidade das pessoas, físicas e/ou jurídicas.
- A unilateralidade do procedimento de
investigação parlamentar não confere, à CPI, o
poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às
testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados
direitos e certas garantias que derivam do texto constitucional ou
de preceitos inscritos em diplomas legais.
No contexto do sistema constitucional brasileiro, a
unilateralidade da investigação parlamentar - à semelhança do que
ocorre com o próprio inquérito policial - não tem o condão de
abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir
as liberdades ou de conferir, à autoridade pública (investida,
ou não, de mandato eletivo), poderes absolutos na produção da prova e
na pesquisa dos fatos.
- O Advogado - ao cumprir o dever de prestar assistência
técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica
perante qualquer órgão do Estado - converte, a sua atividade
profissional, quando exercida com independência e sem indevidas
restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer
que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe
neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir
respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade
das garantias jurídicas - legais ou constitucionais
- outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e
de seus direitos.
O Poder Judiciário não pode
permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre
e independente, há de ser permanentemente assegurada pelos juízes e
pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas
e de aniquilação dos direitos do cidadão.
- A exigência de respeito aos princípios
consagrados em nosso sistema constitucional não frustra nem
impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes
investigatórios de que se acha investida.
O ordenamento positivo brasileiro garante, às
pessoas em geral, qualquer que seja a instância de Poder, o direito
de fazer-se assistir, tecnicamente, por Advogado, a quem
incumbe, com apoio no Estatuto da Advocacia, comparecer às
reuniões da CPI, sendo-lhe lícito reclamar, verbalmente
ou por escrito, contra a inobservância de
preceitos constitucionais, legais ou regimentais, notadamente nos
casos em que o comportamento arbitrário do órgão de investigação
parlamentar vulnere as garantias básicas daquele - indiciado ou
testemunha - que constituiu, para a sua defesa, esse
profissional do Direito.
- A função de investigar não pode
resumir-se a uma sucessão de abusos nem deve reduzir-se
a atos que importem em violação de direitos ou que
impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O
inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência
nem converter-se em meio de transgressão ao regime
da lei.
Os fins não justificam os meios. Há parâmetros
ético-jurídicos que não podem nem devem
ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do
Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou
julgam, não estão exonerados do dever de respeitar
os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves
que sejam os fatos cuja prática tenha motivado a instauração do procedimento
estatal.
- O sistema normativo
brasileiro assegura, ao Advogado regularmente
constituído pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de
persecução estatal), o direito de pleno acesso ao inquérito (parlamentar,
policial ou administrativo), mesmo que sujeito a
regime de sigilo (sempre excepcional), desde que
se trate de provas já produzidas e formalmente incorporadas ao procedimento
investigatório, excluídas, conseqüentemente, as informações e providências investigatórias
ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não
documentadas no próprio inquérito ou processo judicial. Precedentes.
Doutrina.
DECISÃO: Trata-se
de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado com a
finalidade de obter ordem judicial que determine, à Presidência da
CPI do ECAD, efetivo respeito à prerrogativa – que
se reconhece à entidade sob investigação parlamentar - de
ser assistida, sem indevidas restrições, por
Advogados por ela regularmente constituídos.
Busca-se,
na presente sede mandamental, proteção judicial efetiva que
garanta, ao ECAD, parte ora impetrante, o direito ao uso da
palavra, a ser exercido por intermédio de seus Advogados,
sempre que tal se fizer necessário ao longo das sessões de
referida Comissão Parlamentar de Inquérito, inclusive para efeito
de protestar, por escrito ou oralmente, contra
eventuais abusos perpetrados por esse órgão de investigação parlamentar contra
o autor deste “writ” constitucional, de oferecer contradita
a testemunhas a serem inquiridas ou de requerer quaisquer
medidas destinadas a preservar direitos e garantias
que o ordenamento jurídico confere a qualquer pessoa
submetida a procedimentos estatais de investigação.
Pretende-se,
ainda, que petições formuladas pelo ECAD sejam
protocolizadas e apreciadas pela CPI em questão,
cuja Presidência deverá abster-se de coibir manifestações, pela
ordem, formuladas, pública e oralmente, pelos
Advogados constituídos, pelo próprio ECAD, para proteção de seus
direitos.
Eis, em síntese, os fundamentos em
que se apóia a presente impetração mandamental:
“Em 28.06.2011, foi instalada pelo Senado
Federal comissão parlamentar de inquérito, com o objetivo de investigar,
no prazo de cento e oitenta dias, supostas irregularidades praticadas
pelo ECAD na arrecadação e distribuição de recursos oriundos do direito
autoral, abuso da ordem econômica e prática de cartel no arbitramento de
valores de direito autoral e conexos, o modelo de gestão coletiva centralizada
de direitos autorais de execução pública no Brasil e a necessidade de aprimoramento
da Lei 9.610/98.
O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição -
ECAD constituiu, como patronos, os advogados ** e **, inscritos
na OAB/RJ sob os números ** e **, respectivamente, outorgando-lhes poderes
para o exercício da advocacia perante a Comissão Parlamentar de
Inquérito do Senado Federal.
Sucede que, infelizmente, a Defesa do ECAD tem
sido sistematicamente cerceada e as prerrogativas dos advogados, frontalmente
desrespeitadas. Os advogados estão sendo impedidos de sustentar,
oralmente, durante as reuniões da CPI do ECAD. Além disso,
pasme-se!, os advogados acabaram impedidos, até mesmo, de peticionar!
II
Os atos ilegais
(1) Impedimento do uso da palavra pelo
advogado constituído pelo ECAD, durante a sexta reunião da CPI do
ECAD.
Em 16.08.2011, durante a sexta reunião da CPI do
ECAD, o advogado ora signatário, Dr. **, pediu a palavra, pela ordem, para
questionar a inobservância do quórum mínimo para a instalação e realização
da reunião, vez que apenas dois dos onze senadores membros estavam presentes no
recinto.
A questão de ordem foi afastada pelo Presidente da
CPI com base no artigo 148, § 1º, do Regimento Interno do Senado Federal, que
exime o quorum para a tomada de depoimentos de pessoas convidadas. Assim,
após declarar aberta a sessão, o Presidente passou a convidar os
depoentes do dia para tomarem assento à mesa principal.
Nesse momento, o advogado pediu novamente a
palavra, em questão de ordem, para pleitear que a CPI examinasse e
deliberasse sobre a petição, apresentada pelo ECAD, relativa à
contradita da testemunha **, da ACIMBRA, sociedade excluída do ECAD por
suspeitas de transferência forjada de trinta titulares de outra associação.
Porém, inadvertidamente, o Presidente da CPI
do ECAD cassou a palavra do advogado, como ficou registrado na
respectiva ata (...).
.......................................................
A palavra do advogado foi cassada porque, segundo o
Presidente e o Relato da CPI do ECAD, somente os senadores membros poderiam
se pronunciar oralmente, pela ordem, perante aquela Comissão. O
Presidente da CPI chegou a dizer que ‘excepcionalmente’ permitiria
ao advogado formular oralmente a sua questão de ordem (a regra, segundo ele,
seria a de que os requerimentos deveriam ser feitos exclusivamente por
escrito). Mas, logo em seguida, o Presidente, mudando de
idéia, simplesmente cortou o microfone do advogado.
Assim é que o advogado, desrespeitado, ficou
proibido de prosseguir em sua fala já iniciada - tanto no
microfone, como fora dele - de modo que o seu pleito não foi sequer
ouvido pelos demais integrantes da comissão. O Presidente da CPI recepcionou
a petição, para fins de contradita, mas não deu curso ao
incidente processual, de acordo com o que estabelece o artigo 214 do
Código de Processo Penal. O depoimento de ** foi prestado livremente,
naquela reunião, como se nada houvesse sido ofertado em oposição pela entidade
investigada pela CPI...
(2) Recusa de recebimento (protocolo)
de petições formuladas pela Defesa do ECAD.
Esta segunda ilegalidade, ‘data venia’, é de corar
frade de pedra.
Em 16.09.2011, o ECAD dirigiu petição ao
Presidente da CPI do ECAD, denunciando a atividade suspeita de um
assessor parlamentar, Sr. **, que conduziria ao impedimento daquele
servidor para desempenhar funções auxiliares aos trabalhos da CPI.
.......................................................
Surpreendentemente, a CPI do ECAD se recusou a
receber a petição. O protocolo foi recusado pelo gabinete do
Presidente da CPI do ECAD, Sr. Senador **, pelo Secretário de Apoio à Comissão Parlamentar
de Inquérito, Sr. **, pelo assessor parlamentar, Sr. **, e, até mesmo, pelo
protocolo geral do Senado Federal.
As tentativas de apresentação da petição foram feitas
pelo Sr. **, gerente de relações institucionais do ECAD, a quem foi
alegado que a CPI só receberia petições de respostas de solicitações
feitas pela CPI do ECAD.
Em 20.09.2011, a Defesa do ECAD formulou
outra petição, desta feita com o propósito de ter acesso a um documento
de caráter confidencial, anexado, por seu Presidente, aos autos
da CPI. (...).
.......................................................
Incrivelmente, esta segunda petição também foi
recusada pelo protocolo da CPI do ECAD. Trata-se de requerimento
cujo objeto é perfeitamente lícito e consonante com o direito do investigado
de conhecer, na íntegra, os documentos já acostados aos autos de
investigação conduzida por autoridade pública.
Essas recusas de protocolo das duas petições
foram denunciadas à Ouvidoria do Senado, em 20.09.2011, através de
contato com a sua central de atendimento telefônico (Tel.0800-612211), ficando
o chamado registrado sob o nº 959.676.
Em vão.
Aparentemente, as portas do Senado se fecharam
para a Defesa do ECAD, não havendo alternativa outra a não ser a
de socorrer-se do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição e dos
direitos fundamentais.” (grifei)
Sendo esse o contexto, passo a
apreciar a postulação de ordem cautelar. E, ao fazê-lo,
destaco, desde logo, que compete
ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, em sede originária,
mandados de segurança impetrados contra Comissões Parlamentares de Inquérito,
quando constituídas no âmbito do
Congresso Nacional ou, como sucede na espécie, no
de qualquer de suas Casas.
Trata-se de entendimento que tem prevalecido
na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RDA 196/195 – RDA
196/197 - RDA 199/205 - HC 79.244/DF, Rel.
Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - MS 23.452/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO
– MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), cujas
decisões enfatizam que as Comissões Parlamentares de Inquérito - por
constituírem a “longa manus” do próprio Congresso
Nacional - sujeitam-se, em tema de mandado de segurança (ou
de “habeas corpus”), ao controle jurisdicional imediato
desta Corte Suprema (RDA 47/286-304), especialmente quando
se imputar, ao órgão de investigação parlamentar, a prática abusiva
de atos, que, eventualmente afetados pela eiva da
inconstitucionalidade, possam gerar injusta lesão ao
direito subjetivo de qualquer pessoa ou instituição.
É por essa razão - e com apoio em autorizado magistério
doutrinário (JOÃO MANGABEIRA, “Em Torno da Constituição”, p. 99, 1934,
Companhia Editora Nacional; PEDRO LESSA, “Do Poder Judiciário”, p.
65/66, 1915, Livraria Francisco Alves; JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, “Teoria
Geral das Comissões Parlamentares - Comissões Parlamentares de Inquérito,
p. 150, 2ª ed., 2001, Forense; RAUL MACHADO HORTA, “Limitações
Constitucionais dos Poderes de Investigação”, “in” RDP, vol. 5/38;
CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 2/80,
5ª ed., 1954; ROBERTO ROSAS, “Limitações às Comissões de Inquérito do
Legislativo”, “in” RDP, vol. 12/56-60; MANOEL GONÇALVES
FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1/358-359, 3ª ed., 2000, Saraiva, v.g.)
- que tenho afirmado,
a propósito da competência investigatória das Comissões
Parlamentares de Inquérito, que estas não dispõem de poderes
absolutos, devendo exercê-los com estrita
observância dos limites formais e
materiais fixados pelo ordenamento positivo e com plena submissão
à autoridade hierárquico-normativa
da Constituição da República.
A presente causa - motivada por grave
denúncia resultante de alegados abusos que teriam sido
praticados pela CPI/ECAD contra o exercício, por Advogados
constituídos pelo próprio ECAD, de seus direitos e
prerrogativas profissionais - suscita reflexões a
propósito de matéria já assentada, há muitos anos, em
jurisprudência constitucional prevalecente nesta Suprema Corte.
O regime democrático, analisado na perspectiva das
delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem
condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem
em seu dever de respeitar a Constituição e as leis, pois, sob
esse sistema de governo, não poderá jamais
prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de
um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.
Na realidade, o respeito incondicional aos
valores e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente,
a organização do Estado, longe de comprometer a eficácia das
investigações parlamentares, configura fator de irrecusável legitimação de
todas as ações lícitas desenvolvidas pelas comissões legislativas.
Cabe assinalar, antes de mais nada, que
a unilateralidade da investigação parlamentar - à
semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial - não tem
o condão de abolir os direitos, de derrogar as
garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir,
à autoridade pública (investida, ou não, de mandato legislativo),
poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa
dos fatos.
É por essa razão que, embora amplos,
os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito não são ilimitados
nem absolutos, daí resultando, consoante
estabelece a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal,
que esses órgãos de investigação parlamentar não podem formular
acusações nem punir delitos (RDA 199/205, Rel. Min.
PAULO BROSSARD) nem desrespeitar o privilégio contra a
auto-incriminação que assiste a qualquer indiciado ou
testemunha (RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 79.244-DF,
Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE) nem decretar a prisão de qualquer
pessoa, exceto nas hipóteses de flagrância (RDA 196/195,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - RDA 199/205, Rel. Min. PAULO
BROSSARD).
Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que
a norma constitucional que
outorga “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”
a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CF, art. 58, § 3º) traz,
quanto a esta, o reconhecimento da necessidade de que os
seus poderes somente devem ser exercidos de maneira compatível
com a natureza do regime e com respeito (indeclinável)
aos princípios consagrados na Constituição da República.
As Comissões Parlamentares de Inquérito, à
semelhança do que ocorre com qualquer outro órgão
do Estado ou com qualquer dos demais Poderes da
República, submetem-se, no exercício de suas prerrogativas
institucionais, às limitações impostas pela autoridade
suprema da Constituição.
Desse modo, não se revela lícito supor,
na hipótese de eventuais desvios jurídico-constitucionais de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de
controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima
interferência na esfera de outro Poder da República.
Nem se diga, desse modo, na
perspectiva do caso em exame, que a atuação do Poder Judiciário,
nas hipóteses de lesão, atual ou iminente, a
direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, configuraria
intervenção ilegítima dos juízes e Tribunais no âmbito de atuação do
Poder Legislativo.
Eventuais divergências na interpretação do ordenamento
positivo não traduzem nem configuram situação de conflito
institucional, especialmente porque, acima de qualquer
dissídio, situa-se a autoridade da Constituição e
das leis da República.
Isso significa, na fórmula política do
regime democrático, que nenhum dos Poderes da República está
acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão
do Estado - situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder
Executivo, ou no Poder Legislativo - é imune à força da
Constituição e ao império das leis.
Uma decisão judicial - que restaura a
integridade da ordem jurídica e que torna efetivos
os direitos assegurados pelas leis - não pode ser
considerada um ato de interferência na esfera do Poder
Legislativo, consoante já o proclamou o Plenário
do Supremo Tribunal Federal, em unânime julgamento:
“O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS
PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA
SEPARAÇÃO DE PODERES.
- A essência do postulado da divisão
funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter
os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa
o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui
o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias
proclamados pela Constituição.
Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta
Política, não pode constituir nem qualificar-se como um inaceitável
manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de
qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.
- O Poder Judiciário, quando intervém para
assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade
e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente
legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da
República.
O regular exercício da função jurisdicional,
por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não
transgride o princípio da separação de poderes.
Desse modo, não se
revela lícito afirmar, na
hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma
Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle
jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro
Poder da República.”
(RTJ 173/805-810,
806, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Esse entendimento tem sido por mim observado em
diversos julgamentos que proferi nesta Suprema Corte e nos
quais tenho sempre enfatizado que a restauração,
em sede judicial, de direitos e garantias constitucionais lesados
por uma CPI não traduz situação configuradora
de ofensa ao princípio da divisão funcional do poder, como resulta claro
de decisão assim ementada:
“(...) O postulado da separação de poderes e a
legitimidade constitucional do controle, pelo Judiciário,
das funções investigatórias das CPIs, se e quando exercidas
de modo abusivo. Doutrina. Precedentes do Supremo
Tribunal Federal. (...).”
(HC 88.015-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE
MELLO, “in” “Informativo/STF”
nº 416/2006)
Tenho salientado, por isso mesmo,
que as Comissões Parlamentares de Inquérito, no desempenho de seus
poderes de investigação, estão sujeitas às mesmas normas e limitações que incidem sobre
os magistrados, quando no exercício de igual prerrogativa. Vale
dizer: as Comissões Parlamentares de Inquérito somente
podem exercer as atribuições investigatórias que lhes são inerentes, desde
que o façam nos mesmos termos e segundo as
mesmas exigências que a Constituição e as leis da República impõem
aos juízes, especialmente no que concerne ao necessário
respeito às prerrogativas que o ordenamento positivo do Estado confere
aos Advogados.
Esse entendimento nada mais reflete senão as
próprias conseqüências que emanam dos fundamentos e dos
princípios que regem, em nosso sistema jurídico, a organização e
o exercício do poder.
Cabe reconhecer, por tal razão,
que a presença do Advogado em qualquer procedimento estatal,
independentemente do domínio institucional em que esse mesmo
procedimento tenha sido instaurado, constitui fator
inequívoco de certeza de que os órgãos do Poder Público (Legislativo,
Judiciário e Executivo) não transgredirão os limites delineados pelo
ordenamento positivo da República, respeitando-se, em
conseqüência, como se impõe aos membros e aos agentes do
aparelho estatal, o regime das liberdades públicas e os
direitos subjetivos constitucionalmente assegurados às pessoas em geral, inclusive
àquelas eventualmente sujeitas, qualquer que seja o motivo, a
investigação parlamentar, ou a inquérito policial, ou, ainda,
a processo judicial.
Em decisão por mim proferida no Supremo Tribunal Federal
(MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), já deixei acentuado
que o Poder Judiciário não pode permitir que
se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente,
há de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos
Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e
de aniquilação dos direitos do cidadão.
A exigência de respeito aos princípios consagrados
em nosso sistema constitucional não frustra nem
impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos
poderes investigatórios de que se acha investida.
Não custa reafirmar
a advertência desta Suprema Corte no sentido de que a observância
dos direitos e das garantias constitui fator de legitimação da
atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se
impõe a todos - magistrados, administradores e legisladores.
O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado Democrático de
Direito, não há lugar para o poder absoluto.
Ainda que em seu próprio domínio institucional, nenhum
órgão estatal pode, legitimamente, pretender-se superior ou
supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal e
das leis da República.
O respeito efetivo aos direitos individuais e às
garantias fundamentais outorgados pela ordem jurídica às pessoas em geral representa,
no contexto de nossa experiência institucional, o sinal mais expressivo
e o indício mais veemente de que se consolida,
em nosso País,
de maneira real, o quadro democrático delineado na Constituição
da República.
A separação de poderes - consideradas as circunstâncias
históricas que justificaram a sua concepção no plano da teoria
constitucional - não pode ser jamais invocada como princípio
destinado a frustrar a resistência jurídica a qualquer
ensaio de opressão estatal ou a inviabilizar
a oposição a qualquer tentativa de comprometer, sem justa causa, o
exercício do direito de protesto contra abusos que possam ser
cometidos pelas instituições do Estado.
A investigação parlamentar, judicial
ou administrativa de qualquer fato determinado, por mais grave que
ele possa ser, não prescinde do respeito
incondicional e necessário, por parte do órgão público dela incumbido, das
normas, que, instituídas
pelo ordenamento jurídico, visam a equacionar, no
contexto do sistema constitucional, a situação de contínua tensão
dialética que deriva do antagonismo histórico entre o poder do
Estado (que jamais deverá revestir-se de caráter ilimitado) e
os direitos da pessoa (que não poderão impor-se de forma absoluta).
É, portanto, na Constituição e nas
leis - e não na busca pragmática de resultados,
independentemente da adequação dos meios à disciplina imposta
pela ordem jurídica - que se deverá promover a solução do
justo equilíbrio entre as relações de tensão que
emergem do estado de permanente
conflito entre o princípio da autoridade e o valor
da liberdade.
A controvérsia mandamental delineada na presente
causa reclama solução, que, associada às diretrizes fixadas pelo
modelo constitucional, encontra fundamento no Estatuto da
Advocacia, cujas prescrições conferem ao Advogado
determinados direitos e prerrogativas profissionais plenamente compatíveis
com o integral desempenho, pela CPI, dos poderes de investigação
de que se acha investida.
O que simplesmente se revela intolerável (e
não tem sentido) - por divorciar-se dos padrões ordinários
de submissão à “rule of law” - é a sugestão,
paradoxal, contraditória e inaceitável, de que o respeito
pela autoridade da Constituição e das leis possa traduzir fator ou
elemento de frustração da eficácia da investigação estatal.
Extremamente oportunas, sob tal aspecto, como
já tive o ensejo de assinalar em anterior decisão (MS
23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), as observações feitas pelo
ilustre Advogado paulista e ex-Secretário da Justiça do Estado de São
Paulo, Dr. MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA (“As CPIs e a Advocacia”, “in”
“O Estado de S. Paulo”, edição de
05/12/99, p. A22):
“Nem se diga, no lastimável argumento repugnante
à inteligência e comprometedor do bom senso, que a presença ativa dos
advogados nas sessões das CPIs frustraria os seus propósitos
investigatórios. Fosse assim, tampouco chegariam a termo as averiguações
policiais; ou os inquéritos civis conduzidos pelo Ministério Público; ou,
ainda, as inquirições probatórias administradas pelo Judiciário. Com
plena razão, magistrados, promotores e delegados jamais alegaram
a Advocacia como obstáculo, bem ao contrário, nela enxergando meio útil
à descoberta da verdade e à administração da Justiça.” (grifei)
Cabe assinalar, por isso mesmo, que
as prerrogativas legais outorgadas aos Advogados possuem
finalidade específica, pois visam a assegurar, a
esses profissionais do Direito - cuja indispensabilidade é
proclamada pela própria Constituição da República (CF,
art. 133) -, o exercício, perante qualquer instância de Poder, de
direitos próprios destinados a viabilizar a defesa técnica daqueles em
cujo favor atuam.
Desse modo, não se revela legítimo opor,
ao Advogado, restrições, que, ao impedirem, injusta
e arbitrariamente, o regular exercício de sua
atividade profissional, culminem por esvaziar e nulificar
a própria razão de ser de sua intervenção perante os órgãos do Estado, inclusive
perante as próprias Comissões Parlamentares de Inquérito.
É por isso que se torna
necessário insistir no fato de que os poderes das Comissões
Parlamentares de Inquérito, embora amplos, não são
ilimitados nem absolutos.
Por tal razão, o Plenário do Supremo
Tribunal Federal, no julgamento definitivo do MS
23.452/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, deixou assentado, por
unanimidade, “que os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito -
precisamente porque não são absolutos - sofrem as restrições impostas
pela Constituição da República e encontram limite nos direitos
fundamentais do cidadão, que só podem ser afetados nas hipóteses e
na forma que a Carta Política
estabelecer”.
Nesse contexto, assiste, ao Advogado, a
prerrogativa - que lhe é dada por força e autoridade da lei - de
velar pela intangibilidade dos direitos daquele que o constituiu como
patrono de sua defesa técnica, competindo-lhe, por isso
mesmo, para o fiel desempenho do “munus” de que se
acha incumbido esse profissional do Direito, o exercício dos meios
legais vocacionados à plena realização de seu legítimo
mandato profissional.
Por esse motivo, nada pode justificar o desrespeito
às prerrogativas que a própria Constituição e as leis da
República atribuem ao Advogado, pois o gesto de afronta ao
estatuto jurídico da Advocacia representa, na perspectiva
de nosso sistema normativo, um
ato de inaceitável ofensa ao próprio texto constitucional e
ao regime das liberdades públicas nele consagrado.
Vale transcrever, por oportuno, trecho
de decisão proferida pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, no MS
23.684-MC/DF, em que se assegurou, a Advogados, no
âmbito de Comissão Parlamentar de Inquérito, “o exercício regular do
direito à palavra, na conformidade do art. 7º, X e XI, da L. 8.906/94”:
“Como tenho afirmado em casos anteriores, ao conferir às CPIs ‘os poderes de
investigação próprios das autoridades judiciais’ (art. 58, § 3º), a
Constituição impôs ao órgão parlamentar as mesmas limitações e a mesma
submissão às regras do devido processo legal a que sujeitos os titulares da
jurisdição.
Entre umas e
outras, situam-se com
relevo as prerrogativas elementares do exercício da advocacia, outorgadas aos
seus profissionais em favor da defesa dos direitos de seus constituintes.” (grifei)
O presente caso põe em evidência, uma vez mais,
situação impregnada de alto relevo jurídico-constitucional, consideradas
as graves implicações que resultam de injustas
restrições impostas ao exercício, em plenitude, do direito de
defesa e à prática, pelo Advogado, das
prerrogativas profissionais que lhe são inerentes (Lei nº 8.906/94,
art. 7º, incisos XIII e XIV).
O Estatuto da Advocacia - ao dispor sobre o acesso
do Advogado aos procedimentos estatais, inclusive àqueles que
tramitem em regime de sigilo (hipótese em que se lhe exigirá a
exibição do pertinente instrumento de mandato) – assegura-lhe,
como típica prerrogativa de ordem profissional, o direito
de examinar os autos, sempre em benefício de seu
constituinte, em ordem a viabilizar, quanto a este, o
exercício do direito de conhecer os dados probatórios já formalmente
produzidos no âmbito da investigação.
Impende enfatizar que o Advogado, atuando
em nome de seu constituinte, possui o direito de acesso aos autos
da investigação penal, policial ou parlamentar, ainda que
em tramitação sob regime de sigilo, considerada a
essencialidade do direito de defesa, que há de ser compreendido
- enquanto prerrogativa indisponível assegurada pela Constituição
da República - em perspectiva global e abrangente.
É certo, no entanto, em ocorrendo
a hipótese excepcional de sigilo - e para que não se
comprometa o sucesso das providências investigatórias em curso
de execução (a significar, portanto, que se
trata de providências ainda não formalmente
incorporadas ao procedimento de investigação) -, que o Advogado tem
o direito de conhecer as informações
“já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas
à decretação e às vicissitudes da execução das diligências em
curso (...)” (RTJ 191/547-548, Rel. Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE – grifei).
Vê-se, pois, que assiste,
àquele sob investigação do Estado, p. ex., o direito de acesso
aos autos, por intermédio de seu Advogado, que poderá examiná-los,
extrair cópias ou tomar apontamentos (Lei nº
8.906/94, art. 7º, XIV), observando-se, quanto a tal
prerrogativa, orientação consagrada em decisões
proferidas por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR,
Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 90.232/AM, Rel. Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE - Inq 1.867/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS
23.836/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.), mesmo quando
a investigação estatal (como aquela conduzida por uma CPI) esteja sendo
processada em caráter sigiloso, hipótese em que o Advogado do
investigado, desde que por este constituído, poderá ter
acesso às peças que digam respeito à pessoa do seu cliente e
que instrumentalizem prova já produzida nos autos, tal
como esta Corte decidiu no julgamento do HC 82.354/PR,
Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE (RTJ 191/547-548):
“Do plexo de
direitos dos quais é titular o indiciado - interessado primário no
procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e
instrumento a prerrogativa do advogado, de acesso aos autos
respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94,
art. 7º, XIV), da qual - ao contrário do que previu em hipóteses
assemelhadas - não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a
irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do
defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das
investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da
proporcionalidade.
A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria
uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que
lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a
assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe
é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o
investigado de prestar declarações.
O direito do
indiciado, por seu
advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos
do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da
execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às
interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe,
em conseqüência, a autoridade policial, de meios legítimos para obviar
inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do
inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.” (grifei)
Devo salientar, neste ponto, que assim
tenho julgado nesta Suprema Corte, havendo proferido decisões
nas quais assegurei, a pessoas submetidas a investigação
do Poder Público, o direito de acesso a documentos, que, embora
sob cláusula de sigilo, já haviam sido formalmente introduzidos nos
autos da investigação estatal, considerado, para tanto, o
postulado da comunhão da prova:
“RECLAMAÇÃO.
DESRESPEITO AO ENUNCIADO CONSTANTE DA SÚMULA VINCULANTE Nº
14/STF. PERSECUÇÃO PENAL INSTAURADA EM
JUÍZO OU FORA DELE. REGIME
DE SIGILO. INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO
PELO INDICIADO OU PELO RÉU. DIREITO DE DEFESA. COMPREENSÃO
GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONSTITUCIONAL.
PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI Nº 8.906/94,
ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). CONSEQÜENTE ACESSO
AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E
FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA PERSECUÇÃO PENAL (INQUÉRITO
POLICIAL OU PROCESSO JUDICIAL) OU A ESTES REGULARMENTE
APENSADOS. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA
AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. RECLAMAÇÃO
PROCEDENTE, EM PARTE.
- O sistema normativo brasileiro assegura,
ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por
aquele submetido a atos de persecução estatal), o direito de pleno acesso
aos autos de persecução penal, mesmo que sujeita, em juízo ou
fora dele, a regime de sigilo (necessariamente excepcional),
limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já
produzidas e formalmente
incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas,
conseqüentemente, as informações
e providências investigatórias ainda em curso de execução e,
por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito ou processo
judicial. Precedentes. Doutrina.”
(Rcl 8.770-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE
MELLO)
Esse mesmo entendimento foi por mim
reiterado, quando do julgamento de pleito cautelar que
apreciei em decisão assim ementada:
“INQUÉRITO
POLICIAL. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE
AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO. DIREITO
DE DEFESA. COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA
CONSTITUCIONAL. PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI
Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). OS
ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILEGIAR O MISTÉRIO NEM
COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO DO REGIME DE SIGILO, O EXERCÍCIO
DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS POR PARTE DAQUELE QUE SOFRE
INVESTIGAÇÃO PENAL. CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ
DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA
INVESTIGAÇÃO PENAL. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA
AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA
CAUTELAR DEFERIDA.
- O indiciado é sujeito de direitos e
dispõe de garantias plenamente oponíveis ao poder do
Estado (RTJ 168/896-897). A unilateralidade da
investigação penal não autoriza que se desrespeitem as garantias
básicas de que se acha investido, mesmo na fase pré-processual, aquele
que sofre, por parte do Estado, atos de persecução criminal.
- O sistema
normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente constituído
pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de persecução estatal), o
direito de pleno acesso aos autos de investigação penal, mesmo
que sujeita a regime de sigilo (necessariamente excepcional), limitando-se,
no entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e
formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas,
conseqüentemente, as informações e providências investigatórias ainda
em curso de execução e, por isso
mesmo, não documentadas no próprio inquérito. Precedentes.
Doutrina.”
(HC
87.725-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 02/02/2007)
Cumpre referir, ainda, que a colenda Segunda
Turma
do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o HC 88.190/RJ, Rel.
Min. CEZAR PELUSO, reafirmou o entendimento anteriormente
adotado por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO
DE MELLO – HC 87.827/RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), em
julgamento que restou consubstanciado em acórdão assim ementado:
“ADVOGADO. Investigação sigilosa do
Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do
suspeito ou investigado. Intervenção nos autos. Elementos
documentados. Acesso amplo. Assistência técnica
ao cliente ou constituinte. Prerrogativa profissional
garantida. Resguardo da eficácia das investigações em
curso ou por fazer. Desnecessidade de constarem dos autos
do procedimento investigatório. HC concedido. Inteligência
do art. 5°, LXIII, da CF, art. 20 do CPP, art. 7º, XIV, da Lei nº
8.906/94, art. 16 do CPPM, e art. 26 da Lei nº 6.368/76. Precedentes.
É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas
corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente
envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já
documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com
competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam
respeito ao constituinte.” (grifei)
Vale assinalar, por relevante, que o
postulado da comunhão da prova, cuja eficácia projeta-se e
incide sobre todos os dados informativos, que compõem
o acervo probatório
coligido pelas autoridades e agentes estatais, assume
inegável importância no plano das garantias de ordem jurídica
reconhecidas ao investigado e ao réu, pois, como se
sabe, o princípio da comunhão (ou da aquisição)
da prova assegura, ao que sofre investigação estatal
– ainda que submetida esta ao regime de sigilo -, o direito de
conhecer os elementos de informação já existentes nos autos e
cujo teor possa ser, eventualmente, de seu interesse,
quer para efeito de exercício da auto-defesa, quer
para desempenho da defesa técnica.
É que a prova (inclusive a penal), uma
vez regularmente introduzida no procedimento investigatório, não
pertence a ninguém, mas integra os autos do
respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse
modo, acervo plenamente acessível a todos
quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de
investigação por parte do Estado.
Essa compreensão do tema – cabe ressaltar -
é revelada por autorizado magistério doutrinário (ADALBERTO JOSÉ
Q. T. DE CAMARGO ARANHA, “Da Prova no Processo Penal”, p. 31, item n. 3,
3ª ed., 1994, Saraiva; DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, “O Princípio da Comunhão
da Prova”, “in” Revista Dialética de Direito Processual (RDPP), vol.
31/19-33, 2005; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 259, item
n. 17.7, 7ª ed., 2001, Saraiva; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Prova Penal”,
p. 31, item n. 2, 2ª ed., 2003, Lumen Juris, v.g.), valendo
referir, por extremamente relevante, a lição expendida
por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“O Juiz e a Prova”, “in”
Revista de Processo, nº 35, Ano IX, abril/junho de 1984, p. 178/184):
“E basta
pensar no seguinte: se a prova for feita, pouco
importa a sua origem. (...). A prova do fato não aumenta nem diminui de
valor segundo haja sido trazida por aquele a quem cabia o ônus, ou pelo
adversário. A isso se chama o ‘princípio da comunhão da prova’:
a prova, depois de feita, é comum, não
pertence a quem a faz, pertence ao processo; pouco
importa sua fonte, pouco importa sua proveniência. (...).” (grifei)
Cumpre rememorar, ainda, ante a sua
inteira pertinência, o magistério de PAULO RANGEL (“Direito
Processual Penal”, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8ª ed., 2004, Lumen Juris):
“A palavra
comunhão vem do latim ‘communione’, que significa ato ou efeito
de comungar, participação em comum em crenças, idéias ou interesses. Referindo-se
à prova, portanto, quer-se dizer que a mesma, uma
vez no processo, pertence a todos os sujeitos processuais
(partes e juiz), não obstante ter sido levada apenas por um deles.
(...).
O princípio da comunhão da prova é um
consectário lógico dos princípios da verdade real e da igualdade das
partes na relação jurídico processual, pois as partes, a fim de
estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem mão do meio de
prova levado para os autos.
(...) Por conclusão, os princípios da
verdade real e da igualdade das partes na relação
jurídico-processual fazem com que as provas carreadas para os
autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja,
dão origem ao princípio da comunhão
das provas.” (grifei)
Sendo assim, tendo presentes as razões expostas
- e considerando, sobretudo, as graves alegações
constantes desta impetração -, defiro o pedido de medida liminar,
para, nos estritos termos da Lei nº 8.906/94
(Estatuto da Advocacia), assegurar, aos Advogados do
ora impetrante, que se acham regularmente inscritos nos quadros da
OAB/Seção do Rio de Janeiro, e que atuam na defesa
dos direitos do ECAD, ora impetrante, a observância e
o respeito, por parte do Senhor Presidente da CPI do ECAD,
e dos membros que a compõem, das seguintes prerrogativas
estabelecidas no diploma legislativo mencionado:
(a) direito
de receber, no exercício de suas atribuições profissionais, “tratamento
compatível com a dignidade da Advocacia”, além
de garantidas, para esse efeito, condições adequadas ao desempenho de seu
encargo profissional (Lei nº 8.906/94,
art. 6º, parágrafo único);
(b) direito
de exercer, sem indevidas restrições, com liberdade e independência, a atividade
profissional de Advogado perante a CPI do ECAD (Lei nº
8.906/94, art. 7º, I), assegurando-se-lhes a prerrogativa de
que as suas petições, formuladas
em nome da parte impetrante, sejam
protocolizadas e apreciadas pela CPI em questão, inclusive
o pleito pelo qual se haja solicitado “cópia do documento
identificado como de caráter reservado e sigiloso”, notadamente porque documentos sob
sigilo, mas formalmente
incorporados aos autos de investigação, mostram-se plenamente
acessíveis à
pessoa investigada, tendo em vista o princípio da comunhão da prova;
(c) direito
de “falar, sentado ou em pé”, perante a CPI do ECAD (Lei nº 8.906/94,
art. 7º, XII), quando se revelar necessário intervir, verbalmente, para esclarecer equívoco ou dúvida em relação a fatos,
documentos ou afirmações
que guardem pertinência com o objeto da investigação legislativa - desde
que o uso da palavra se faça pela
ordem, observadas as normas
regimentais que disciplinam os trabalhos das Comissões Parlamentares de
Inquérito -, ou, ainda, para oferecer contradita a testemunhas, aplicando-se,
no que couber, o art. 214 do CPP c/c a Lei nº 1.579/52 (art. 3º), assegurado,
também, o direito de o representante do ECAD fazer-se
acompanhar de seus Advogados, mesmo que a sessão da CPI se faça “em
reunião secreta” (Lei nº 1.579/52,
art. 3º, § 2º, acrescentado pela Lei nº 10.679/2003).
2. Requisitem-se informações à autoridade apontada
como coatora (Lei nº 12.016/2009, art. 7º, I).
3. Comunique-se, com urgência, transmitindo-se
cópia da presente decisão, para efeito de seu integral
cumprimento, ao Senhor Presidente da CPI/ECAD.
Publique-se.
Brasília, 05 de outubro de 2011.
(23º aniversário da promulgação da Constituição democrática
de 1988)
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
*decisão publicada no DJe de 10.10.2011