quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Limites constitucionais à formação da prova no crime do art. 306 do código de trânsito brasileiro


Limites constitucionais à formação da prova no crime do art. 306 do código de trânsito brasileiro

André Myssior e Bruno César Gonçalves da Silva

1. Introdução
Em 28.03.2012, a Terceira Seção do STJ concluiu o julgamento do REsp 1.111.566 tendo, por apertada maioria, decidido que, para fins de comprovação da ocorrência do crime previsto no art. 306 do CTB, com a redação dada pela Lei 11.705/2008 (Lei Seca), apenas a prova técnica é admissível.
Essa decisão fez recrudescer o debate sobre a segurança no trânsito, sendo referida decisão, com frequência, noticiada nos meios de comunicação com manchetes do tipo “STJ ‘esvazia’ Lei Seca” ou dizeres semelhantes.
De certa forma, a discussão em torno da referida decisão do STJ pôs em campos distintos e antagônicos, de um lado, a tutela da segurança pública e, de outro, a tutela dos direitos e garantias individuais asseguradas pela Constituição. Obviamente e, a despeito do que pode parecer, não são coisas mutuamente excludentes. Pelo contrário. Apenas a efetivação dos direitos e garantias fundamentais assegura uma sociedade justa, igualitária e segura.
De fato, há uma clara tendência no Direito Penal brasileiro de ampliação da tutela penal de bens jurídicos, sobretudo mediante a criação de novos tipos penais de perigo abstrato e com elementos normativos em profusão. Tudo isso na vã suposição de que a extensão da tutela penal a praticamente todos os campos da vida em sociedade é instrumento, por si só, apto a solucionar problemas sociais e trazer pacificação.
É precisamente neste contexto que se situa a Lei 11.705, de 19.07.2008, que ficou conhecida como “Lei Seca”. Referido diploma legal inseriu diversas modificações na Lei 9.503/1997, que instituiu o CTB. No que pertine ao objeto deste estudo, modificou o tipo penal previsto no art. 306, que prevê o crime de condução de veículo automotor em via pública sob a influência de álcool ou drogas.
Neste estudo se abordará a antiga e a atual estrutura do tipo penal em apreço para, a partir daí, explorar as implicações processuais, notadamente no campo do direito probatório.
2. A estrutura do tipo penal do art. 306 do CTB – Antes e após a “Lei Seca”
A redação original do art. 306 do CTB tinha o seguinte teor: “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.
Tratava-se, evidentemente, de um crime de perigo concreto. Para que houvesse tipicidade era necessária não só a prova da ingestão de álcool ou de substância de efeitos análogos, mas a prova do efetivo perigo de dano à incolumidade ou ao patrimônio alheios.
Com a entrada em vigor da Lei 11.705/2008, o art. 306 do CTB passou a vigorar com a seguinte redação: “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
O que era, então, crime de perigo concreto tornou-se crime de perigo abstrato. Desonera-se, pois, a acusação da prova do efetivo perigo de dano, bastando à configuração do tipo penal a constatação da alcoolemia. Entretanto, não basta à acusação provar a ingestão de álcool para que se presuma o perigo; o tipo penal exige uma quantidade específica de dosagem alcoólica no sangue do condutor.
Se o que o legislador pretendeu com a transformação de um crime de perigo concreto em crime de perigo abstrato foi tornar mais fácil a punição do condutor que dirige após consumir álcool, o efeito foi inverso. Pelo menos se os ditames constitucionais e legais pertinentes à prova forem devidamente observados.
Isso porque, a despeito da supressão do perigo concreto no tipo, um elemento que era, na redação anterior do art. 306 normativo, passou a ser objetivo-descritivo. Ou seja, a tipicidade não é atingida por um juízo valorativo do intérprete. É atingida apenas a partir da prova que demonstre exatamente a ocorrência fática dessa elementar. E, pela própria natureza do elemento objetivo-descritivo do tipo que a Lei 11.705/2008 colocou no lugar do elemento normativo, essa prova tornou-se sobremaneira difícil. É sobre esses limites à atividade probatória e seu impacto na caracterização do atual tipo penal do art. 306 do CTB que trataremos adiante.
3. A prova necessária para o juízo positivo de tipicidade do crime do art. 306 do CTB
Já que a atual redação do art. 306 do CTB tem como elementar objetivo-descritiva do tipo a exata dosagem alcoólica por litro de sangue a partir da qual é incriminada a condução de veículo automotor em via pública, é evidente que a única prova apta a exonerar a acusação de seu ônus probatório é a pericial.
Não se trata aqui de tarifar provas, mesmo porque o processo acusatório não condiz com esse sistema. Mas de exigir-se, para desincumbência do ônus probatório, uma prova adequada para formar-se a cognitio acerca da ocorrência de um fato determinado relevante para o processo.
Tampouco se olvida aqui do art. 182 do CPP que, consagrando os princípios da livre apreciação das provas e do livre convencimento motivado, dispõe que “o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte”, o que significa que o juiz pode formar sua convicção com base em outras provas.
Entretanto, para que se verifique a existência dessa elementar objetivo-descritiva no caso concreto, não será possível ao juiz concluir pela existência do crime sem que haja prova pericial. Nem o art. 167 do CPP pode dispensar a realização da perícia. Se o tipo exige, para sua configuração, a verificação de uma dosagem alcoólica exata, mesmo quando os vestígios tenham desparecido, a prova testemunhal neste caso específico, não poderá suprir-lhe a falta. A máxima contribuição que a testemunha poderá fornecer serão suas impressões acerca do modo como o imputado se apresentava. Poderá relatar sintomas de embriaguez, mas jamais será capaz de atestar que o imputado possuía, ao tempo da ação, dosagem alcoólica igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue.
O que ficaria, portanto, provado pela prova exclusivamente testemunhal seriam os sintomas. Estes sintomas, mesmo que conhecidos e provados, permitiriam induzir apenas e tão somente a embriaguez do condutor; mas não permitiriam induzir a dosagem alcoólica no sangue superior à permitida. Ou seja, a prova testemunhal sequer é apta a formar indício do preenchimento da elementar do tipo a que nos referimos. Serviria para provar a existência do crime de dirigir sob influência de álcool conforme a redação antiga do tipo; não para provar a existência do crime conforme sua estrutura típica atual.
Ademais, conquanto as disposições do CPP acerca da produção da prova pericial sejam, naturalmente, aplicáveis, a disciplina legal não pode se esgotar aí. Isso porque toda a lógica da disciplina legal da prova pericial tem em conta ocorpo de delito como sendo a vítima ou coisa que tenha relação com o fato. No caso do crime do art. 306 do CTB, há uma diferença essencial: o corpo de delito não é a vítima; é o próprio agente. E, sendo assim, além das disposições legais acerca da perícia, hão de ser observados os limites constitucionais e legais de obtenção de elementos de prova quando esses devem ser fornecidos pelo próprio imputado, isso é, quando a produção da prova depende de uma interferência do mesmo.
4. O nemo tenetur se detegere e a prova obtida pelo etilômetro e pela extração de sangue
O princípio do nemo tenetur se detegere é considerado garantia fundamental do cidadão e, mais especificamente, do imputado. Cuida-se do direito a não autoincriminação, que não se resume ao direito ao silêncio, sendo absolutamente impróprio tratar o direito ao silêncio como sinônimo do nemo tenetur se detegere.
O direito a não autoincriminação tem uma amplitude maior, da qual o direito ao silêncio é apenas um de seus aspectos, objetivando proteger o indivíduo contra excessos cometidos ao longo da persecução penal por quem quer que se lance na atividade probatória, incluindo-se nele o resguardo contra qualquer forma de atentado à liberdade de autodeterminação do imputado, a pretexto de se obter elementos de prova.
A análise do direito a não autoincriminação sempre vem à tona quando o meio de prova empregado, tal como o etilômetro e o exame de sangue, depende, para seu emprego, da cooperação do imputado, implicando um facere por parte deste.
Cuidando-se o direito a não autoincriminação de garantia fundamental implícita, deve-se fixar a disciplina desta nos mesmos termos em que a Constituição Federal fixou a disciplina do direito ao silêncio, por analogia, pois ambos decorrem da mesma noção fixada pelo princípio do nemo tenetur se detegere.
Descendo ao campo infraconstitucional, não restará dúvidas de que o princípionemo tenetur se detegere traz nítido limite à produção da prova no crime do art. 306 do CTB. E esse limite será encontrado, por analogia, na disciplina legal do interrogatório do imputado, na medida em que se trata de ato no qual há participação direta dele na formação da prova.
Na ideia original do CPP, o interrogatório do réu, isso é, sua intervenção pessoal e direta na formação da prova, era considerado unicamente um meio de prova e ato exclusivo do juiz.
A partir da vigência da CF de 1988, a visão da doutrina e da jurisprudência acerca da participação pessoal do réu no processo sofreu alteração profunda. De meio de prova, o interrogatório passou a ser visto como meio de defesa; de ato privativo do juiz passou a ser visto como faculdade do imputado.
Essa evolução chegou, finalmente, a ser positivada com a edição da Lei 10.729/2003, que alterou completamente a disciplina legal do interrogatório. A mais importante foi a determinação de que, não só o réu tem direito ao silêncio, como a de que seu silêncio não pode ser interpretado em desfavor de sua defesa. Mais, exige-se que o réu seja formalmente advertido pelo juiz não só acerca do direito ao silêncio, mas também acerca da inexistência de prejuízo na utilização da garantia.
Obviamente, a mesma lei estabelece que as disposições que traz sobre o interrogatório judicial do acusado aplicam-se, também, à sua oitiva no inquérito. Ou seja, a expressão do princípio da não autoincriminação que a Lei 10.792/2003 trouxe ao interrogatório judicial estendeu-se também à fase pré-processual.
Pode-se, então, afirmar que, ao ser ouvido no inquérito, o investigado tem que ser advertido de que tem o direito a permanecer em silêncio e que seu silêncio não será interpretado em prejuízo de sua defesa. Se não houver essa advertência, o interrogatório policial é nulo e, embora a nulidade no inquérito não contamine o processo, a prova obtida em sede inquisitorial com violação à Constituição é inadmissível no processo (CF, art. 5.º, LVI). As declarações que eventualmente preste terão sido, inexoravelmente, ilicitamente obtidas.
Mas se essa advertência é imposta não só pela lei, mas pelo princípio constitucional da não autoincriminação, ela é obrigatória não só na prova oral fornecida pelo investigado. É também obrigatória em qualquer contribuição corporal que o imputado forneça à persecução. Inclusive ao exame pericial.
Assim, se compete ao inquiridor, na polícia ou em Juízo, informar ao imputado sobre seu direito ao silêncio, deve também o agente incumbido da produção de qualquer prova informar o imputado sobre seu direito a não autoincriminar-se. Se não for dado ao imputado a ciência acerca de seu direito a não autoincriminação, as provas eventualmente obtidas no ato probatório, reputar-se-ão ilícitas.
Tal entendimento encontra precedente na jurisprudência do STF, que no julgamento do HC 80.949/RJ, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, fixou que:
“47. Elevando aí o nemo tenetur se detegere à alçada de garantia fundamental (...) na linha da construção da jurisprudência americana, a partir dos famosos casosEscobedo vs. Illinois (378 US 478 (1964) e Miranda vs. Arizona (384 US 436 (1969) –, impõe ao inquiridor, na polícia ou em juízo, o dever de advertência de seu privilégio contra a auto-incriminação.
48. A falta da advertência – e, como é óbvio, da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o acusado, ainda quando observadas as formalidades procedimentais do interrogatório”.
Assim, no que toca a realização do “teste do bafômetro” e do exame de sangue,compete ao agente incumbido da diligência o dever de informar ao imputado que o mesmo não está obrigado a colaborar na produção da prova que possa lhe incriminar.
Não cientificado o imputado de que ele tem o direito a não produzir prova contra si, ou seja, de que ele não está obrigado a soprar o etilômetro ou submeter-se à extração de sangue, tem-se como consequência a ilicitude da prova assim obtida, tal como ilícitas são as declarações que o imputado preste em seu desfavor, quando não lhe é previamente assegurado o direito ao silêncio.
O direito à prova não chega ao ponto de conferir ao órgão persecutor prerrogativas sobre o próprio corpo e a liberdade de escolha do imputado, pois se ninguém é obrigado a declarar-se culpado, certo é também que ninguém é obrigado a fornecer provas contra si mesmo.
Assim, não se garantindo ao imputado o direito de não produzir prova contra si mesmo e, pelo contrário, ainda admoestando-o, obrigando-o a fazer o “teste do bafômetro” ou o exame de sangue, com base no inconstitucional art. 277 da Lei 9.503/1997, tem-se que o resultado “concentração de álcool por litro de ar expelido dos pulmões” ou “concentração de álcool por litro de sangue”, terá sido ilicitamente obtido, em face da violação ao nemo tenetur se detegere, sendo inadmissível no processo.
5. Conclusão
O que se conclui é que, se observados os limites constitucionais à formação da prova, seria, na prática, próximo do impossível provar a existência do crime do art. 306 do CTB. Se o imputado for formal e expressamente cientificado do seu direito de se negar a se submeter ao teste do “bafômetro” e ao exame de sangue, é possível afirmar que quase ninguém aceitaria contribuir na produção da prova pericial.
Se essa constatação faz surgir temor de que, observados os princípios constitucionais que regem o processo penal, haverá aumento de insegurança nas ruas e estradas do Brasil, esse temor não se deve às garantias fundamentais. Deve-se à tendência contemporânea de criar mais e mais tipos penais de perigo abstrato e de tentar resolver todos os problemas da sociedade por meio do Direito Penal.
O crime de perigo concreto é, por definição, mais garantista do que o crime de perigo abstrato. E, conforme abordado, o revogado crime de perigo concreto do art. 306 do CTB mostrava-se muito mais apto a tutelar eficaz e constitucionalmente o bem jurídico incolumidade pública do que o atual crime de perigo abstrato.
Nota-se, então, que no julgamento do REsp 1.111.566 em 28.03.2012, a Terceira Seção do STJ fez, embora por apertada maioria, prevalecer a disciplina e as limitações à formação da prova previstas no plano constitucional.
André Myssior
Mestre em Ciências Penais pela UFMG.
Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Superior Dom Helder Câmara em Belo Horizonte/MG.
Advogado.
Bruno César Gonçalves da Silva
Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-Minas.
Professor de Direito Processual Penal na Pós-graduação em Ciências Penais da Faculdade de Direito Milton Campos em Nova Lima/MG.
Advogado.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

CPI – Limitações Jurídicas – Direitos e Garantias da Pessoa Investigada -Advogados – Prerrogativas Profissionais - STF


CPI – Limitações Jurídicas – Direitos e Garantias da Pessoa Investigada -Advogados – Prerrogativas Profissionais
 (Transcrições)

MS 30906 MC/DF*

RELATOR: Min. Celso de Mello

EMENTA: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. SUBMISSÃO INCONDICIONAL DA CPI À AUTORIDADE DA CONSTITUIÇÃO E DAS LEIS DA REPÚBLICA. EXIGÊNCIA INERENTE AO ESTADO DE DIREITO FUNDADO EM BASES DEMOCRÁTICAS. DIREITOS DAS PESSOAS (FÍSICAS E JURÍDICAS) E PRERROGATIVAS PROFISSIONAIS DO ADVOGADO. DIREITO DO ADVOGADO AO USO DA PALAVRA, MESMO NO ÂMBITO DE COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. PRERROGATIVA DE PROTOCOLIZAR E DE VER APRECIADAS, PELA CPI, PETIÇÕES FORMULADAS EM NOME DA PESSOA OU DA ENTIDADE SOB INVESTIGAÇÃO. DIREITO DE ACESSO A DOCUMENTOS SOB CLÁUSULA DE SIGILO, DESDE QUE JÁ INCORPORADOS AOS AUTOS DO INQUÉRITO PARLAMENTAR. POSTULADO DA COMUNHÃO DA PROVA. DOUTRINA CONSAGRADA NA SÚMULA VINCULANTE Nº 14/STF. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- A investigação parlamentar, por mais graves que sejam os fatos pesquisados pela Comissão legislativa, não pode desviar-se dos limites traçados pela Constituição nem transgredir as garantias, que, decorrentes do sistema normativo, foram atribuídas à generalidade das pessoas, físicas e/ou jurídicas.
- A unilateralidade do procedimento de investigação parlamentar não confere, à CPI, o poder de agir arbitrariamente em relação ao indiciado e às testemunhas, negando-lhes, abusivamente, determinados direitos e certas garantias que derivam do texto constitucional ou de preceitos inscritos em diplomas legais.
No contexto do sistema constitucional brasileiro, a unilateralidade da investigação parlamentar - à semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial - não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública (investida, ou não, de mandato eletivo), poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa dos fatos.
- O Advogado - ao cumprir o dever de prestar assistência técnica àquele que o constituiu, dispensando-lhe orientação jurídica perante qualquer órgão do Estado - converte, a sua atividade profissional, quando exercida com independência e sem indevidas restrições, em prática inestimável de liberdade. Qualquer que seja o espaço institucional de sua atuação, ao Advogado incumbe neutralizar os abusos, fazer cessar o arbítrio, exigir respeito ao ordenamento jurídico e velar pela integridade das garantias jurídicas - legais ou constitucionais - outorgadas àquele que lhe confiou a proteção de sua liberdade e de seus direitos.
O Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente, de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão.
- A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.
O ordenamento positivo brasileiro garante, às pessoas em geral, qualquer que seja a instância de Poder, o direito de fazer-se assistir, tecnicamente, por Advogado, a quem incumbe, com apoio no Estatuto da Advocacia, comparecer às reuniões da CPI, sendo-lhe lícito reclamar, verbalmente ou por escrito, contra a inobservância de preceitos constitucionais, legais ou regimentais, notadamente nos casos em que o comportamento arbitrário do órgão de investigação parlamentar vulnere as garantias básicas daquele - indiciado ou testemunha - que constituiu, para a sua defesa, esse profissional do Direito.
- A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.
Os fins não justificam os meios. parâmetros ético-jurídicos que não podem nem devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitar os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática tenha motivado a instauração do procedimento estatal.
- O sistema normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de persecução estatal), o direito de pleno acesso ao inquérito (parlamentar, policial ou administrativo), mesmo que sujeito a regime de sigilo (sempre excepcional), desde que se trate de provas já produzidas e formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas, conseqüentemente, as informações e providências investigatórias ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito ou processo judicial. Precedentes. Doutrina.

DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de medida liminar, impetrado com a finalidade de obter ordem judicial que determine, à Presidência da CPI do ECAD, efetivo respeito à prerrogativa – que se reconhece à entidade sob investigação parlamentar - de ser assistida, sem indevidas restrições, por Advogados por ela regularmente constituídos.
Busca-se, na presente sede mandamental, proteção judicial efetiva que garanta, ao ECAD, parte ora impetrante, o direito ao uso da palavra, a ser exercido por intermédio de seus Advogados, sempre que tal se fizer necessário ao longo das sessões de referida Comissão Parlamentar de Inquérito, inclusive para efeito de protestar, por escrito ou oralmente, contra eventuais abusos perpetrados por esse órgão de investigação parlamentar contra o autor destewrit” constitucional, de oferecer contradita a testemunhas a serem inquiridas ou de requerer quaisquer medidas destinadas a preservar direitos e garantias que o ordenamento jurídico confere a qualquer pessoa submetida a procedimentos estatais de investigação.
Pretende-se, ainda, que petições formuladas pelo ECAD sejam protocolizadas e apreciadas pela CPI em questão, cuja Presidência deverá abster-se de coibir manifestações, pela ordem, formuladas, pública e oralmente, pelos Advogados constituídos, pelo próprio ECAD, para proteção de seus direitos.
Eis, em síntese, os fundamentos em que se apóia a presente impetração mandamental:

Em 28.06.2011, foi instalada pelo Senado Federal comissão parlamentar de inquérito, com o objetivo de investigar, no prazo de cento e oitenta dias, supostas irregularidades praticadas pelo ECAD na arrecadação e distribuição de recursos oriundos do direito autoral, abuso da ordem econômica e prática de cartel no arbitramento de valores de direito autoral e conexos, o modelo de gestão coletiva centralizada de direitos autorais de execução pública no Brasil e a necessidade de aprimoramento da Lei 9.610/98.
O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - ECAD constituiu, como patronos, os advogados ** e **, inscritos na OAB/RJ sob os números ** e **, respectivamente, outorgando-lhes poderes para o exercício da advocacia perante a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal.
Sucede que, infelizmente, a Defesa do ECAD tem sido sistematicamente cerceada e as prerrogativas dos advogados, frontalmente desrespeitadas. Os advogados estão sendo impedidos de sustentar, oralmente, durante as reuniões da CPI do ECAD. Além disso, pasme-se!, os advogados acabaram impedidos, até mesmo, de peticionar!
II
Os atos ilegais
(1) Impedimento do uso da palavra pelo advogado constituído pelo ECAD, durante a sexta reunião da CPI do ECAD.
Em 16.08.2011, durante a sexta reunião da CPI do ECAD, o advogado ora signatário, Dr. **, pediu a palavra, pela ordem, para questionar a inobservância do quórum mínimo para a instalação e realização da reunião, vez que apenas dois dos onze senadores membros estavam presentes no recinto.
A questão de ordem foi afastada pelo Presidente da CPI com base no artigo 148, § 1º, do Regimento Interno do Senado Federal, que exime o quorum para a tomada de depoimentos de pessoas convidadas. Assim, após declarar aberta a sessão, o Presidente passou a convidar os depoentes do dia para tomarem assento à mesa principal.
Nesse momento, o advogado pediu novamente a palavra, em questão de ordem, para pleitear que a CPI examinasse e deliberasse sobre a petição, apresentada pelo ECAD, relativa à contradita da testemunha **, da ACIMBRA, sociedade excluída do ECAD por suspeitas de transferência forjada de trinta titulares de outra associação.
Porém, inadvertidamente, o Presidente da CPI do ECAD cassou a palavra do advogado, como ficou registrado na respectiva ata (...).
.......................................................
A palavra do advogado foi cassada porque, segundo o Presidente e o Relato da CPI do ECAD, somente os senadores membros poderiam se pronunciar oralmente, pela ordem, perante aquela Comissão. O Presidente da CPI chegou a dizer que ‘excepcionalmente’ permitiria ao advogado formular oralmente a sua questão de ordem (a regra, segundo ele, seria a de que os requerimentos deveriam ser feitos exclusivamente por escrito). Mas, logo em seguida, o Presidente, mudando de idéia, simplesmente cortou o microfone do advogado.
Assim é que o advogado, desrespeitado, ficou proibido de prosseguir em sua fala já iniciada - tanto no microfone, como fora dele - de modo que o seu pleito não foi sequer ouvido pelos demais integrantes da comissão. O Presidente da CPI recepcionou a petição, para fins de contradita, mas não deu curso ao incidente processual, de acordo com o que estabelece o artigo 214 do Código de Processo Penal. O depoimento de ** foi prestado livremente, naquela reunião, como se nada houvesse sido ofertado em oposição pela entidade investigada pela CPI...
(2) Recusa de recebimento (protocolo) de petições formuladas pela Defesa do ECAD.
Esta segunda ilegalidade, ‘data venia’, é de corar frade de pedra.
Em 16.09.2011, o ECAD dirigiu petição ao Presidente da CPI do ECAD, denunciando a atividade suspeita de um assessor parlamentar, Sr. **, que conduziria ao impedimento daquele servidor para desempenhar funções auxiliares aos trabalhos da CPI.
.......................................................
Surpreendentemente, a CPI do ECAD se recusou a receber a petição. O protocolo foi recusado pelo gabinete do Presidente da CPI do ECAD, Sr. Senador **, pelo Secretário de Apoio à Comissão Parlamentar de Inquérito, Sr. **, pelo assessor parlamentar, Sr. **, e, até mesmo, pelo protocolo geral do Senado Federal.
As tentativas de apresentação da petição foram feitas pelo Sr. **, gerente de relações institucionais do ECAD, a quem foi alegado que a CPI só receberia petições de respostas de solicitações feitas pela CPI do ECAD.
Em 20.09.2011, a Defesa do ECAD formulou outra petição, desta feita com o propósito de ter acesso a um documento de caráter confidencial, anexado, por seu Presidente, aos autos da CPI. (...).
.......................................................
Incrivelmente, esta segunda petição também foi recusada pelo protocolo da CPI do ECAD. Trata-se de requerimento cujo objeto é perfeitamente lícito e consonante com o direito do investigado de conhecer, na íntegra, os documentos já acostados aos autos de investigação conduzida por autoridade pública.
Essas recusas de protocolo das duas petições foram denunciadas à Ouvidoria do Senado, em 20.09.2011, através de contato com a sua central de atendimento telefônico (Tel.0800-612211), ficando o chamado registrado sob o nº 959.676.
Em vão.
Aparentemente, as portas do Senado se fecharam para a Defesa do ECAD, não havendo alternativa outra a não ser a de socorrer-se do Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição e dos direitos fundamentais.” (grifei)

Sendo esse o contexto, passo a apreciar a postulação de ordem cautelar. E, ao fazê-lo, destaco, desde logo, que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, em sede originária, mandados de segurança impetrados contra Comissões Parlamentares de Inquérito, quando constituídas no âmbito do Congresso Nacional ou, como sucede na espécie, no de qualquer de suas Casas.
Trata-se de entendimento que tem prevalecido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RDA 196/195 – RDA 196/197 - RDA 199/205 - HC 79.244/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - MS 23.452/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), cujas decisões enfatizam que as Comissões Parlamentares de Inquérito - por constituírem a “longa manus do próprio Congresso Nacional - sujeitam-se, em tema de mandado de segurança (ou de “habeas corpus”), ao controle jurisdicional imediato desta Corte Suprema (RDA 47/286-304), especialmente quando se imputar, ao órgão de investigação parlamentar, a prática abusiva de atos, que, eventualmente afetados pela eiva da inconstitucionalidade, possam gerar injusta lesão ao direito subjetivo de qualquer pessoa ou instituição.
É por essa razão - e com apoio em autorizado magistério doutrinário (JOÃO MANGABEIRA, “Em Torno da Constituição”, p. 99, 1934, Companhia Editora Nacional; PEDRO LESSA, “Do Poder Judiciário”, p. 65/66, 1915, Livraria Francisco Alves; JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, “Teoria Geral das Comissões Parlamentares - Comissões Parlamentares de Inquérito, p. 150, 2ª ed., 2001, Forense; RAUL MACHADO HORTA, “Limitações Constitucionais dos Poderes de Investigação”, “in” RDP, vol. 5/38; CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 2/80, 5ª ed., 1954; ROBERTO ROSAS, “Limitações às Comissões de Inquérito do Legislativo”, “in RDP, vol. 12/56-60; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 1/358-359, 3ª ed., 2000, Saraiva, v.g.) - que tenho afirmado, a propósito da competência investigatória das Comissões Parlamentares de Inquérito, que estas não dispõem de poderes absolutos, devendo exercê-los com estrita observância dos limites formais e materiais fixados pelo ordenamento positivo e com plena submissão à autoridade hierárquico-normativa da Constituição da República.
A presente causa - motivada por grave denúncia resultante de alegados abusos que teriam sido praticados pela CPI/ECAD contra o exercício, por Advogados constituídos pelo próprio ECAD, de seus direitos e prerrogativas profissionais - suscita reflexões a propósito de matéria já assentada, há muitos anos, em jurisprudência constitucional prevalecente nesta Suprema Corte.
O regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não tem condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.
Na realidade, o respeito incondicional aos valores e aos princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente, a organização do Estado, longe de comprometer a eficácia das investigações parlamentares, configura fator de irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas pelas comissões legislativas.
Cabe assinalar, antes de mais nada, que a unilateralidade da investigação parlamentar - à semelhança do que ocorre com o próprio inquérito policial - não tem o condão de abolir os direitos, de derrogar as garantias, de suprimir as liberdades ou de conferir, à autoridade pública (investida, ou não, de mandato legislativo), poderes absolutos na produção da prova e na pesquisa dos fatos.
É por essa razão que, embora amplos, os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito não são ilimitados nem absolutos, daí resultando, consoante estabelece a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, que esses órgãos de investigação parlamentar não podem formular acusações nem punir delitos (RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD) nem desrespeitar o privilégio contra a auto-incriminação que assiste a qualquer indiciado ou testemunha (RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 79.244-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE) nem decretar a prisão de qualquer pessoa, exceto nas hipóteses de flagrância (RDA 196/195, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RDA 199/205, Rel. Min. PAULO BROSSARD).
Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que a norma constitucional que outorgapoderes de investigação próprios das autoridades judiciais” a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CF, art. 58, § 3º) traz, quanto a esta, o reconhecimento da necessidade de que os seus poderes somente devem ser exercidos de maneira compatível com a natureza do regime e com respeito (indeclinável) aos princípios consagrados na Constituição da República.
As Comissões Parlamentares de Inquérito, à semelhança do que ocorre com qualquer outro órgão do Estado ou com qualquer dos demais Poderes da República, submetem-se, no exercício de suas prerrogativas institucionais, às limitações impostas pela autoridade suprema da Constituição.
Desse modo, não se revela lícito supor, na hipótese de eventuais desvios jurídico-constitucionais de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República.
Nem se diga, desse modo, na perspectiva do caso em exame, que a atuação do Poder Judiciário, nas hipóteses de lesão, atual ou iminente, a direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, configuraria intervenção ilegítima dos juízes e Tribunais no âmbito de atuação do Poder Legislativo.
Eventuais divergências na interpretação do ordenamento positivo não traduzem nem configuram situação de conflito institucional, especialmente porque, acima de qualquer dissídio, situa-se a autoridade da Constituição e das leis da República.
Isso significa, na fórmula política do regime democrático, que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado - situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo - é imune à força da Constituição e ao império das leis.
Uma decisão judicial - que restaura a integridade da ordem jurídica e que torna efetivos os direitos assegurados pelas leis - não pode ser considerada um ato de interferência na esfera do Poder Legislativo, consoante já o proclamou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em unânime julgamento:

O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.
- A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.
Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.
- O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.
O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.
Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República.”
(RTJ 173/805-810, 806, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Esse entendimento tem sido por mim observado em diversos julgamentos que proferi nesta Suprema Corte e nos quais tenho sempre enfatizado que a restauração, em sede judicial, de direitos e garantias constitucionais lesados por uma CPI não traduz situação configuradora de ofensa ao princípio da divisão funcional do poder, como resulta claro de decisão assim ementada:

“(...) O postulado da separação de poderes e a legitimidade constitucional do controle, pelo Judiciário, das funções investigatórias das CPIs, se e quando exercidas de modo abusivo. Doutrina. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. (...).”
(HC 88.015-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in” “Informativo/STF” nº 416/2006)

Tenho salientado, por isso mesmo, que as Comissões Parlamentares de Inquérito, no desempenho de seus poderes de investigação, estão sujeitas às mesmas normas e limitações que incidem sobre os magistrados, quando no exercício de igual prerrogativa. Vale dizer: as Comissões Parlamentares de Inquérito somente podem exercer as atribuições investigatórias que lhes são inerentes, desde que o façam nos mesmos termos e segundo as mesmas exigências que a Constituição e as leis da República impõem aos juízes, especialmente no que concerne ao necessário respeito às prerrogativas que o ordenamento positivo do Estado confere aos Advogados.
Esse entendimento nada mais reflete senão as próprias conseqüências que emanam dos fundamentos e dos princípios que regem, em nosso sistema jurídico, a organização e o exercício do poder.
Cabe reconhecer, por tal razão, que a presença do Advogado em qualquer procedimento estatal, independentemente do domínio institucional em que esse mesmo procedimento tenha sido instaurado, constitui fator inequívoco de certeza de que os órgãos do Poder Público (Legislativo, Judiciário e Executivo) não transgredirão os limites delineados pelo ordenamento positivo da República, respeitando-se, em conseqüência, como se impõe aos membros e aos agentes do aparelho estatal, o regime das liberdades públicas e os direitos subjetivos constitucionalmente assegurados às pessoas em geral, inclusive àquelas eventualmente sujeitas, qualquer que seja o motivo, a investigação parlamentar, ou a inquérito policial, ou, ainda, a processo judicial.
Em decisão por mim proferida no Supremo Tribunal Federal (MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), já deixei acentuado que o Poder Judiciário não pode permitir que se cale a voz do Advogado, cuja atuação, livre e independente, de ser permanentemente assegurada pelos juízes e pelos Tribunais, sob pena de subversão das franquias democráticas e de aniquilação dos direitos do cidadão.
A exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.
Não custa reafirmar a advertência desta Suprema Corte no sentido de que a observância dos direitos e das garantias constitui fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se impõe a todos - magistrados, administradores e legisladores.
O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado Democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.
Ainda que em seu próprio domínio institucional, nenhum órgão estatal pode, legitimamente, pretender-se superior ou supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal e das leis da República.
O respeito efetivo aos direitos individuais e às garantias fundamentais outorgados pela ordem jurídica às pessoas em geral representa, no contexto de nossa experiência institucional, o sinal mais expressivo e o indício mais veemente de que se consolida, em nosso País, de maneira real, o quadro democrático delineado na Constituição da República.
A separação de poderes - consideradas as circunstâncias históricas que justificaram a sua concepção no plano da teoria constitucional - não pode ser jamais invocada como princípio destinado a frustrar a resistência jurídica a qualquer ensaio de opressão estatal ou a inviabilizar a oposição a qualquer tentativa de comprometer, sem justa causa, o exercício do direito de protesto contra abusos que possam ser cometidos pelas instituições do Estado.
A investigação parlamentar, judicial ou administrativa de qualquer fato determinado, por mais grave que ele possa ser, não prescinde do respeito incondicional e necessário, por parte do órgão público dela incumbido, das normas, que, instituídas pelo ordenamento jurídico, visam a equacionar, no contexto do sistema constitucional, a situação de contínua tensão dialética que deriva do antagonismo histórico entre o poder do Estado (que jamais deverá revestir-se de caráter ilimitado) e os direitos da pessoa (que não poderão impor-se de forma absoluta).
É, portanto, na Constituição e nas leis - e não na busca pragmática de resultados, independentemente da adequação dos meios à disciplina imposta pela ordem jurídica - que se deverá promover a solução do justo equilíbrio entre as relações de tensão que emergem do estado de permanente conflito entre o princípio da autoridade e o valor da liberdade.
A controvérsia mandamental delineada na presente causa reclama solução, que, associada às diretrizes fixadas pelo modelo constitucional, encontra fundamento no Estatuto da Advocacia, cujas prescrições conferem ao Advogado determinados direitos e prerrogativas profissionais plenamente compatíveis com o integral desempenho, pela CPI, dos poderes de investigação de que se acha investida.
O que simplesmente se revela intolerável (e não tem sentido) - por divorciar-se dos padrões ordinários de submissão àrule of law” - é a sugestão, paradoxal, contraditória e inaceitável, de que o respeito pela autoridade da Constituição e das leis possa traduzir fator ou elemento de frustração da eficácia da investigação estatal.
Extremamente oportunas, sob tal aspecto, como já tive o ensejo de assinalar em anterior decisão (MS 23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), as observações feitas pelo ilustre Advogado paulista e ex-Secretário da Justiça do Estado de São Paulo, Dr. MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA (“As CPIs e a Advocacia”, “in” “O Estado de S. Paulo”, edição de 05/12/99, p. A22):

Nem se diga, no lastimável argumento repugnante à inteligência e comprometedor do bom senso, que a presença ativa dos advogados nas sessões das CPIs frustraria os seus propósitos investigatórios. Fosse assim, tampouco chegariam a termo as averiguações policiais; ou os inquéritos civis conduzidos pelo Ministério Público; ou, ainda, as inquirições probatórias administradas pelo Judiciário. Com plena razão, magistrados, promotores e delegados jamais alegaram a Advocacia como obstáculo, bem ao contrário, nela enxergando meio útil à descoberta da verdade e à administração da Justiça.” (grifei)

Cabe assinalar, por isso mesmo, que as prerrogativas legais outorgadas aos Advogados possuem finalidade específica, pois visam a assegurar, a esses profissionais do Direito - cuja indispensabilidade é proclamada pela própria Constituição da República (CF, art. 133) -, o exercício, perante qualquer instância de Poder, de direitos próprios destinados a viabilizar a defesa técnica daqueles em cujo favor atuam.
Desse modo, não se revela legítimo opor, ao Advogado, restrições, que, ao impedirem, injusta e arbitrariamente, o regular exercício de sua atividade profissional, culminem por esvaziar e nulificar a própria razão de ser de sua intervenção perante os órgãos do Estado, inclusive perante as próprias Comissões Parlamentares de Inquérito.
É por isso que se torna necessário insistir no fato de que os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito, embora amplos, não são ilimitados nem absolutos.
Por tal razão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento definitivo do MS 23.452/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, deixou assentado, por unanimidade, “que os poderes das Comissões Parlamentares de Inquérito - precisamente porque não são absolutos - sofrem as restrições impostas pela Constituição da República e encontram limite nos direitos fundamentais do cidadão, que só podem ser afetados nas hipóteses e na forma que a Carta Política estabelecer.
Nesse contexto, assiste, ao Advogado, a prerrogativa - que lhe é dada por força e autoridade da lei - de velar pela intangibilidade dos direitos daquele que o constituiu como patrono de sua defesa técnica, competindo-lhe, por isso mesmo, para o fiel desempenho do “munus” de que se acha incumbido esse profissional do Direito, o exercício dos meios legais vocacionados à plena realização de seu legítimo mandato profissional.
Por esse motivo, nada pode justificar o desrespeito às prerrogativas que a própria Constituição e as leis da República atribuem ao Advogado, pois o gesto de afronta ao estatuto jurídico da Advocacia representa, na perspectiva de nosso sistema normativo, um ato de inaceitável ofensa ao próprio texto constitucional e ao regime das liberdades públicas nele consagrado.
Vale transcrever, por oportuno, trecho de decisão proferida pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, no MS 23.684-MC/DF, em que se assegurou, a Advogados, no âmbito de Comissão Parlamentar de Inquérito, “o exercício regular do direito à palavra, na conformidade do art. 7º, X e XI, da L. 8.906/94”:

Como tenho afirmado em casos anteriores, ao conferir às CPIs ‘os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais’ (art. 58, § 3º), a Constituição impôs ao órgão parlamentar as mesmas limitações e a mesma submissão às regras do devido processo legal a que sujeitos os titulares da jurisdição.
Entre umas e outras, situam-se com relevo as prerrogativas elementares do exercício da advocacia, outorgadas aos seus profissionais em favor da defesa dos direitos de seus constituintes.” (grifei)

O presente caso põe em evidência, uma vez mais, situação impregnada de alto relevo jurídico-constitucional, consideradas as graves implicações que resultam de injustas restrições impostas ao exercício, em plenitude, do direito de defesa e à prática, pelo Advogado, das prerrogativas profissionais que lhe são inerentes (Lei nº 8.906/94, art. 7º, incisos XIII e XIV).
O Estatuto da Advocacia - ao dispor sobre o acesso do Advogado aos procedimentos estatais, inclusive àqueles que tramitem em regime de sigilo (hipótese em que se lhe exigirá a exibição do pertinente instrumento de mandato) – assegura-lhe, como típica prerrogativa de ordem profissional, o direito de examinar os autos, sempre em benefício de seu constituinte, em ordem a viabilizar, quanto a este, o exercício do direito de conhecer os dados probatórios formalmente produzidos no âmbito da investigação.
Impende enfatizar que o Advogado, atuando em nome de seu constituinte, possui o direito de acesso aos autos da investigação penal, policial ou parlamentar, ainda que em tramitação sob regime de sigilo, considerada a essencialidade do direito de defesa, que há de ser compreendido - enquanto prerrogativa indisponível assegurada pela Constituição da República - em perspectiva global e abrangente.
É certo, no entanto, em ocorrendo a hipótese excepcional de sigilo - e para que não se comprometa o sucesso das providências investigatórias em curso de execução (a significar, portanto, que se trata de providências ainda não formalmente incorporadas ao procedimento de investigação) -, que o Advogado tem o direito de conhecer as informações “já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução das diligências em curso (...)” (RTJ 191/547-548, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei).
Vê-se, pois, que assiste, àquele sob investigação do Estado, p. ex., o direito de acesso aos autos, por intermédio de seu Advogado, que poderá examiná-los, extrair cópias ou tomar apontamentos (Lei nº 8.906/94, art. 7º, XIV), observando-se, quanto a tal prerrogativa, orientação consagrada em decisões proferidas por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 90.232/AM, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - Inq 1.867/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 23.836/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.), mesmo quando a investigação estatal (como aquela conduzida por uma CPI) esteja sendo processada em caráter sigiloso, hipótese em que o Advogado do investigado, desde que por este constituído, poderá ter acesso às peças que digam respeito à pessoa do seu cliente e que instrumentalizem prova já produzida nos autos, tal como esta Corte decidiu no julgamento do HC 82.354/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE (RTJ 191/547-548):

Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado - interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado, de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual - ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas - não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.
A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.
O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência, a autoridade policial, de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.” (grifei)

Devo salientar, neste ponto, que assim tenho julgado nesta Suprema Corte, havendo proferido decisões nas quais assegurei, a pessoas submetidas a investigação do Poder Público, o direito de acesso a documentos, que, embora sob cláusula de sigilo, já haviam sido formalmente introduzidos nos autos da investigação estatal, considerado, para tanto, o postulado da comunhão da prova:

RECLAMAÇÃO. DESRESPEITO AO ENUNCIADO CONSTANTE DA SÚMULA VINCULANTE Nº 14/STF. PERSECUÇÃO PENAL INSTAURADA EM JUÍZO OU FORA DELE. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO OU PELO RÉU. DIREITO DE DEFESA. COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONSTITUCIONAL. PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ DOCU­MENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA PERSECUÇÃO PENAL (INQUÉRITO POLICIAL OU PROCESSO JUDICIAL) OU A ESTES REGULARMENTE APENSADOS. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. RECLAMAÇÃO PROCEDENTE, EM PARTE.
- O sistema normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de persecução estatal), o direito de pleno acesso aos autos de persecução penal, mesmo que sujeita, em juízo ou fora dele, a regime de sigilo (necessariamente excepcional), limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas, conseqüentemente, as informações e providências investigatórias ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito ou processo judicial. Precedentes. Doutrina.”
(Rcl 8.770-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Esse mesmo entendimento foi por mim reiterado, quando do julgamento de pleito cautelar que apreciei em decisão assim ementada:

INQUÉRITO POLICIAL. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO. DIREITO DE DEFESA. COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONSTITUCIONAL. PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). OS ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILEGIAR O MISTÉRIO NEM COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO DO REGIME DE SIGILO, O EXERCÍCIO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS POR PARTE DAQUELE QUE SOFRE INVESTIGAÇÃO PENAL. CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA INVESTIGAÇÃO PENAL. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
- O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias plenamente oponíveis ao poder do Estado (RTJ 168/896-897). A unilateralidade da investigação penal não autoriza que se desrespeitem as garantias básicas de que se acha investido, mesmo na fase pré-processual, aquele que sofre, por parte do Estado, atos de persecução criminal.
- O sistema normativo brasileiro assegura, ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por aquele submetido a atos de persecução estatal), o direito de pleno acesso aos autos de investigação penal, mesmo que sujeita a regime de sigilo (necessariamente excepcional), limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas, conseqüentemente, as informações e providências investigatórias ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no próprio inquérito. Precedentes. Doutrina.”
(HC 87.725-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 02/02/2007)

Cumpre referir, ainda, que a colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o HC 88.190/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO, reafirmou o entendimento anteriormente adotado por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 87.827/RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), em julgamento que restou consubstanciado em acórdão assim ementado:

ADVOGADO. Investigação sigilosa do Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do suspeito ou investigado. Intervenção nos autos. Elementos documentados. Acesso amplo. Assistência técnica ao cliente ou constituinte. Prerrogativa profissional garantida. Resguardo da eficácia das investigações em curso ou por fazer. Desnecessidade de constarem dos autos do procedimento investigatório. HC concedido. Inteligência do art. 5°, LXIII, da CF, art. 20 do CPP, art. 7º, XIV, da Lei nº 8.906/94, art. 16 do CPPM, e art. 26 da Lei nº 6.368/76. Precedentes. É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte.” (grifei)

Vale assinalar, por relevante, que o postulado da comunhão da prova, cuja eficácia projeta-se e incide sobre todos os dados informativos, que compõem o acervo probatório coligido pelas autoridades e agentes estatais, assume inegável importância no plano das garantias de ordem jurídica reconhecidas ao investigado e ao réu, pois, como se sabe, o princípio da comunhão (ou da aquisição) da prova assegura, ao que sofre investigação estatalainda que submetida esta ao regime de sigilo -, o direito de conhecer os elementos de informação já existentes nos autos e cujo teor possa ser, eventualmente, de seu interesse, quer para efeito de exercício da auto-defesa, quer para desempenho da defesa técnica.
É que a prova (inclusive a penal), uma vez regularmente introduzida no procedimento investigatório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de investigação por parte do Estado.
Essa compreensão do temacabe ressaltar - é revelada por autorizado magistério doutrinário (ADALBERTO JOSÉ Q. T. DE CAMARGO ARANHA, “Da Prova no Processo Penal”, p. 31, item n. 3, 3ª ed., 1994, Saraiva; DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, “O Princípio da Comunhão da Prova”, “in” Revista Dialética de Direito Processual (RDPP), vol. 31/19-33, 2005; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 259, item n. 17.7, 7ª ed., 2001, Saraiva; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Prova Penal”, p. 31, item n. 2, 2ª ed., 2003, Lumen Juris, v.g.), valendo referir, por extremamente relevante, a lição expendida por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“O Juiz e a Prova”, “in” Revista de Processo, nº 35, Ano IX, abril/junho de 1984, p. 178/184):

E basta pensar no seguinte: se a prova for feita, pouco importa a sua origem. (...). A prova do fato não aumenta nem diminui de valor segundo haja sido trazida por aquele a quem cabia o ônus, ou pelo adversário. A isso se chama oprincípio da comunhão da prova’: a prova, depois de feita, é comum, não pertence a quem a faz, pertence ao processo; pouco importa sua fonte, pouco importa sua proveniência. (...).” (grifei)

Cumpre rememorar, ainda, ante a sua inteira pertinência, o magistério de PAULO RANGEL (“Direito Processual Penal”, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8ª ed., 2004, Lumen Juris):

A palavra comunhão vem do latim ‘communione’, que significa ato ou efeito de comungar, participação em comum em crenças, idéias ou interesses. Referindo-se à prova, portanto, quer-se dizer que a mesma, uma vez no processo, pertence a todos os sujeitos processuais (partes e juiz), não obstante ter sido levada apenas por um deles. (...).
O princípio da comunhão da prova é um consectário lógico dos princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico processual, pois as partes, a fim de estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem mão do meio de prova levado para os autos.
(...) Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico-processual fazem com que as provas carreadas para os autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da comunhão das provas.” (grifei)

Sendo assim, tendo presentes as razões expostas - e considerando, sobretudo, as graves alegações constantes desta impetração -, defiro o pedido de medida liminar, para, nos estritos termos da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), assegurar, aos Advogados do ora impetrante, que se acham regularmente inscritos nos quadros da OAB/Seção do Rio de Janeiro, e que atuam na defesa dos direitos do ECAD, ora impetrante, a observância e o respeito, por parte do Senhor Presidente da CPI do ECAD, e dos membros que a compõem, das seguintes prerrogativas estabelecidas no diploma legislativo mencionado:

(a) direito de receber, no exercício de suas atribuições profissionais, “tratamento compatível com a dignidade da Advocacia”, além de garantidas, para esse efeito, condições adequadas ao desempenho de seu encargo profissional (Lei nº 8.906/94, art. 6º, parágrafo único);

(b) direito de exercer, sem indevidas restrições, com liberdade e independência, a atividade profissional de Advogado perante a CPI do ECAD (Lei nº 8.906/94, art. 7º, I), assegurando-se-lhes a prerrogativa de que as suas petições, formuladas em nome da parte impetrante, sejam protocolizadas e apreciadas pela CPI em questão, inclusive o pleito pelo qual se haja solicitado “cópia do documento identificado como de caráter reservado e sigiloso”, notadamente porque documentos sob sigilo, mas formalmente incorporados aos autos de investigação, mostram-se plenamente acessíveis à pessoa investigada, tendo em vista o princípio da comunhão da prova;

(c) direito de “falar, sentado ou em pé”, perante a CPI do ECAD (Lei nº 8.906/94, art. 7º, XII), quando se revelar necessário intervir, verbalmente, para esclarecer equívoco ou dúvida em relação a fatos, documentos ou afirmações que guardem pertinência com o objeto da investigação legislativa - desde que o uso da palavra se faça pela ordem, observadas as normas regimentais que disciplinam os trabalhos das Comissões Parlamentares de Inquérito -, ou, ainda, para oferecer contradita a testemunhas, aplicando-se, no que couber, o art. 214 do CPP c/c a Lei nº 1.579/52 (art. 3º), assegurado, também, o direito de o representante do ECAD fazer-se acompanhar de seus Advogados, mesmo que a sessão da CPI se faça “em reunião secreta” (Lei nº 1.579/52, art. 3º, § 2º, acrescentado pela Lei nº 10.679/2003).


2. Requisitem-se informações à autoridade apontada como coatora (Lei nº 12.016/2009, art. 7º, I).
3. Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão, para efeito de seu integral cumprimento, ao Senhor Presidente da CPI/ECAD.

Publique-se.

Brasília, 05 de outubro de 2011.
(23º aniversário da promulgação da Constituição democrática de 1988)

Ministro CELSO DE MELLO
Relator

*decisão publicada no DJe de 10.10.2011

Embriaguez e homicídio na condução de veículo automotor - Crime Culposo - STF


HC N. 107.801-SP
RED. P/ O ACÓRDÃO: MIN. LUIZ FUX
EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.
1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.
2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.
3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo.
4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.
5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: ‘A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243)
6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990.
7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).
8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.

Limites e finalidade da Prisão Preventiva - STF


HC N. 101.537-MS
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
PRISÃO PREVENTIVA – EXCEPCIONALIDADE. Em virtude do princípio constitucional da não culpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção. Cumpre interpretar os preceitos que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos ou a instrução penal.
PRISÃO PREVENTIVA – IMPUTAÇÃO. A imputação não respalda a prisão preventiva, sob pena de presumir-se a culpa.
PRISÃO PREVENTIVA – SUPOSIÇÕES. Não fundamentam a prisão preventiva simples suposições quanto a poder o acusado deixar o distrito da culpa e a vir a obstaculizar a instrução criminal.
PRISÃO PREVENTIVA – PERICULOSIDADE DE ENVOLVIDO. A periculosidade de um dos envolvidos surge com caráter individual, não servindo, ainda que seja o chefe da suposta quadrilha, a levar à prisão de outros acusados.
PRISÃO PREVENTIVA – MINISTÉRIO PÚBLICO E JUDICIÁRIO – RIGOR. A credibilidade, quer do Ministério Público, quer do Judiciário, não está na adoção de postura rigorosa à margem da ordem jurídica, mas na observância desta.
PRISÃO PREVENTIVA – EPISÓDIO – REPERCUSSÃO NACIONAL E SENTIMENTO DA SOCIEDADE. Nem a repercussão nacional de certo episódio, nem o sentimento de indignação da sociedade lastreiam a custódia preventiva.