Prisão cautelar - Gravidade do crime - Fundamento
exclusivo - Inadmissibilidade (Transcrições)
HC 111874 MC/BA*
RELATOR: Ministro Celso de
Mello
DECISÃO: Trata-se
de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado
contra decisão emanada de eminente Ministro de Tribunal Superior da
União, que, em sede de outra ação de “habeas corpus” ainda em
curso no Superior Tribunal de Justiça (HC 230.013/BA), denegou
provimento cautelar que lhe havia sido requerido em favor do ora
paciente.
Presente tal contexto, impende verificar,
desde logo, se a situação processual versada nestes autos justifica,
ou não, o afastamento, sempre excepcional, da Súmula
691/STF.
Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ainda
que em caráter extraordinário, tem admitido o afastamento, “hic
et nunc”, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas quais a decisão
questionada divirja da jurisprudência predominante nesta
Corte ou, então, veicule situações configuradoras
de abuso de poder ou caracterizadoras de manifesta
ilegalidade (HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.634-MC/RJ,
Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – HC
87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 89.025-MC-AgR/SP, Rel.
Min. JOAQUIM BARBOSA - HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC
94.016/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 96.095/SP, Rel. Min.
CELSO DE MELLO – HC 96.483/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Parece-me que a situação exposta nesta
impetração ajustar-se-ia às hipóteses que autorizam
a superação do obstáculo representado pela Súmula 691/STF.
Por tal razão, e sem prejuízo
do ulterior reexame da questão, passo, em conseqüência,
a examinar a postulação cautelar ora deduzida nesta sede processual.
E, ao fazê-lo, observo
que os fundamentos em que se apóia a presente impetração revestem-se
de inquestionável relevo jurídico, especialmente se se examinar o conteúdo da decisão que decretou a prisão cautelar do
ora paciente (prisão preventiva), confrontando-se, para esse efeito, as razões que lhe deram
suporte com os padrões que a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal firmou na matéria em análise.
Eis, no ponto, o teor da decisão,
que, emanada do MM. Juiz de Direito da comarca de Monte Santo/BA,
motivou as sucessivas impetrações de “habeas corpus”
em favor do ora paciente :
“O Acusado **, por sua vez, guardou em sua residência inúmeras
munições de uso restrito das forças armadas, praticando crime gravíssimo, o
qual, evidentemente, também comprometeu a ordem pública.”
Presente esse contexto, cabe
verificar se os fundamentos subjacentes à decisão ora questionada
ajustam-se, ou não, ao magistério jurisprudencial firmado
pelo Supremo Tribunal Federal no exame do instituto da prisão cautelar.
Tenho para mim que a decisão em causa, ao
manter a prisão preventiva do ora paciente, apoiou-se em
elementos insuficientes, destituídos de base empírica idônea, revelando-se,
por isso mesmo, desprovida de necessária fundamentação
substancial.
Todos sabemos que a privação cautelar
da liberdade individual é sempre qualificada pela nota da
excepcionalidade (HC 96.219-MC/SP, Rel. Min. CELSO
DE MELLO, v.g.), eis que a supressão meramente processual
do “jus libertatis” não pode ocorrer em um contexto caracterizado
por julgamentos sem defesa ou por condenações sem
processo (HC 93.883/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
É por isso que esta Suprema Corte tem
censurado decisões que fundamentam a privação cautelar da
liberdade no reconhecimento de fatos que se subsumem
à própria descrição abstrata dos elementos que compõem a estrutura jurídica do
tipo penal:
“(...) PRISÃO PREVENTIVA - NÚCLEOS DA
TIPOLOGIA - IMPROPRIEDADE. Os elementos próprios à
tipologia bem como as circunstâncias da prática delituosa não são
suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última
análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta (...).”
(HC 83.943/MG, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)
Essa asserção permite compreender o rigor com que
o Supremo Tribunal Federal tem examinado a utilização, por
magistrados e Tribunais, do instituto da tutela cautelar penal, em
ordem a impedir a subsistência dessa
excepcional medida privativa da liberdade, quando inocorrente
hipótese que possa justificá-la:
“Não serve a prisão preventiva, nem a
Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir
sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual
(...) ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória’ (CF, art. 5º, LVII).
O processo penal, enquanto corre, destina-se a
apurar uma responsabilidade penal; jamais a antecipar-lhe as
conseqüências.
Por tudo isso, é incontornável a exigência
de que a fundamentação da prisão processual seja adequada à demonstração
da sua necessidade, enquanto medida cautelar, o que (...) não
pode reduzir-se ao mero apelo à gravidade objetiva do fato (...).”
(RTJ 137/287, 295, Rel.
Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)
Impende assinalar, por isso mesmo,
que a gravidade em abstrato do crime não
basta para justificar, só por si, a
privação cautelar da liberdade individual do paciente.
O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a
natureza da infração penal não se revela circunstância apta,
“per se”, a justificar a privação cautelar do “status
libertatis” daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.
Esse entendimento vem sendo observado em
sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, ainda que
o delito imputado ao réu seja legalmente classificado como crime hediondo
(RTJ 172/184, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RTJ
182/601-602, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RHC
71.954/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.):
“A gravidade do crime
imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não
basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no
interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima
quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva,
nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem
processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual,
entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória’ (CF, art. 5º, LVII).”
(RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)
“A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO
JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU.
- A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui
extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser
ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se
trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis
que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF,
art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade
do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha
sido imputada.”
(RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
É que a prisão cautelar, para legitimar-se
em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação
dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da
existência material do crime e presença de indícios
suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base
empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade
dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do
indiciado ou do réu, como assinalou, em recentíssimo julgamento,
a colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal:
“A PRISÃO CAUTELAR CONSTITUI
MEDIDA DE NATUREZA EXCEPCIONAL.
- A privação cautelar da liberdade
individual reveste-se de caráter excepcional, somente
devendo ser decretada ou mantida em situações de absoluta
necessidade.
A prisão cautelar, para legitimar-se
em face do sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos
pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da
existência material do crime e presença de indícios
suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em
base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade
dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do
indiciado ou do réu.
- A questão da decretabilidade ou manutenção da prisão
cautelar. Possibilidade excepcional, desde que
satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade
da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade
da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes.
A MANUTENÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE – ENQUANTO
MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER
UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO
INDICIADO OU DO RÉU.
- A prisão cautelar não pode - nem deve
- ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de
punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do
delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado
em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível
com punições sem processo e inconciliável com
condenações sem defesa prévia.
A prisão cautelar - que não deve
ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir
punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada
a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da
atividade estatal desenvolvida no processo penal.
A GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE
LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE.
- A natureza da infração
penal não constitui, só por si, fundamento justificador da
decretação da prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada
pelo Estado. Precedentes.
AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO,
NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE MANTER-SE
A PRISÃO EM FLAGRANTE DO PACIENTE.
- Sem que se caracterize situação de real
necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade
individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões
de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade,
a decretação ou a subsistência da prisão cautelar.
- Presunções arbitrárias, construídas a
partir de juízos meramente conjecturais, porque
formuladas à margem do sistema jurídico, não podem
prevalecer sobre o princípio da liberdade, cuja precedência
constitucional lhe confere posição eminente no domínio do processo
penal.”
(HC 105.270/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Em suma: a análise dos fundamentos invocados
pela parte ora impetrante leva-me a entender que a decisão
judicial de primeira instância não observou os
critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou
em tema de prisão cautelar.
Todas as razões que venho de referir justificam
a superação da restrição fundada na Súmula 691/STF, eis
que o comportamento processual atribuído pela impetração a eminente
Ministro do E. Superior Tribunal de Justiça – presente o contexto
em exame – revela-se em conflito com a jurisprudência que
esta Suprema Corte firmou na matéria, o que
autoriza a apreciação do presente “writ”.
Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, defiro
o pedido de medida liminar, para, até final julgamento desta
ação de “habeas corpus”, garantir, cautelarmente,
ao ora paciente, a liberdade provisória que lhe foi negada nos autos do
Processo-crime nº 0000790-04.2010.805.0168, ora em curso
perante o Juízo de Direito da comarca de Monte Santo/BA, expedindo-se,
imediatamente, em favor do paciente, se por
al não estiver preso, o pertinente alvará de soltura.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se
cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC
230.013/BA), ao E. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (HC 0003420-18.2011.805.0000-0)
e ao Juízo de Direito da comarca de Monte Santo/BA (Processo-crime
nº 0000790-04.2010.805.0168).
Publique-se.
Brasília, 19 de março de 2012.
(200º Aniversário de
promulgação da Constituição Política da Monarquia Espanhola, “La Pepa”,
em Cádiz)
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
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