Súmula
Vinculante nº 14 – Advogados – Acesso aos Autos – Regime de Sigilo –
Possibilidade. (Transcrições)
Rcl
12810 MC/BA*
RELATOR: Min. Celso de
Mello
EMENTA: RECLAMAÇÃO.
DESRESPEITO AO ENUNCIADO CONSTANTE DA SÚMULA
VINCULANTE Nº 14/STF. PERSECUÇÃO PENAL
AINDA NA FASE DE INVESTIGAÇÃO POLICIAL. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE
AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO OU
PELO RÉU. DIREITO DE DEFESA. COMPREENSÃO GLOBAL DA
FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA CONSTITUCIONAL. PRERROGATIVA
PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS
XIII E XIV). CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ
DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE
INCORPORADOS AOS AUTOS DA PERSECUÇÃO PENAL (INQUÉRITO POLICIAL OU
PROCESSO JUDICIAL) OU A ESTES REGULARMENTE APENSADOS.
POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISIÇÃO DA
PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA
CAUTELAR DEFERIDA.
- O sistema normativo brasileiro assegura,
ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou pelo réu), o
direito
de pleno acesso
aos autos de persecução penal, mesmo que sujeita, em juízo ou
fora dele, a regime de sigilo
(necessariamente excepcional),
limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica, às
provas já produzidas e formalmente
incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas,
conseqüentemente, as informações e providências
investigatórias
ainda em curso de execução e, por isso
mesmo, não documentadas no próprio inquérito ou processo
judicial. Precedentes.
Doutrina.
DECISÃO: Trata-se de
reclamação, com pedido de medida liminar, ajuizada
contra ato emanado da MMª. Juíza de Direito da Vara de Tóxicos e Acidentes de
Veículos da comarca de Feira de Santana/BA.
Sustenta-se, na presente causa, que o ato
reclamado em questão teria transgredido o enunciado da Súmula
Vinculante nº 14, que possui o seguinte teor:
“É direito do
defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo
aos elementos de prova que, já documentados em procedimento
investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam
respeito ao exercício do direito de defesa.” (grifei)
Busca-se, em síntese, na presente
sede processual, o acesso da parte ora reclamante aos autos do
procedimento penal nº 0014669-17.2011.805.0080, ainda em fase de
investigação policial.
Sendo esse o contexto, passo a apreciar
o pedido de medida liminar.
E, ao fazê-lo, observo que
os elementos produzidos na presente sede reclamatória parecem
evidenciar a ocorrência de transgressão ao enunciado da Súmula
Vinculante nº 14/STF, revelando-se suficientes para justificar, na
espécie, o acolhimento da pretensão cautelar deduzida pela parte
ora reclamante.
Com efeito, e como tenho salientado em muitas
decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, o presente caso põe
em evidência, uma vez mais, situação impregnada
de alto relevo jurídico-constitucional, consideradas as graves
implicações que resultam de injustas restrições impostas
ao exercício, em plenitude, do direito de defesa e à
prática, pelo Advogado, das prerrogativas profissionais que lhe são
inerentes (Lei nº 8.906/94, art. 7º, incisos XIII e
XIV).
O Estatuto da Advocacia - ao dispor sobre o acesso
do Advogado aos procedimentos estatais, inclusive àqueles que
tramitem em regime de sigilo (hipótese em que se lhe exigirá a
exibição do pertinente instrumento de mandato) – assegura-lhe,
como típica prerrogativa de ordem profissional, o direito
de examinar os autos, sempre em benefício de seu
constituinte, e em ordem a viabilizar, quanto a este, o
exercício do direito de conhecer os dados probatórios já
formalmente produzidos no âmbito da investigação penal, para
que se possibilite a prática de direitos básicos de que também
é titular aquele contra quem foi instaurada, pelo Poder Público, determinada
persecução criminal.
Nem se diga, por absolutamente inaceitável,
considerada a própria declaração constitucional
de direitos, que a pessoa sob persecução penal (em juízo ou
fora dele) mostrar-se-ia destituída de direitos e garantias. Esta
Suprema Corte jamais poderia legitimar tal entendimento, pois
a razão de ser do sistema de liberdades públicas vincula-se,
em sua vocação protetiva, a amparar o cidadão contra
eventuais excessos, abusos ou arbitrariedades emanados
do aparelho estatal.
Não custa advertir, como já tive o ensejo de
acentuar em decisão proferida no âmbito desta Suprema Corte (MS
23.576/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), que o respeito aos
valores e princípios sobre os quais se estrutura, constitucionalmente,
a organização do Estado Democrático de Direito, longe de comprometer
a eficácia das investigações penais, configura fator de
irrecusável legitimação de todas as ações lícitas desenvolvidas
pela Polícia Judiciária, pelo Ministério Público ou pelo próprio
Poder Judiciário.
A pessoa contra quem se instaurou persecução penal – não
importa se em juízo ou fora dele - não
se despoja, mesmo que se cuide de simples indiciado, de sua condição
de sujeito de determinados direitos e de senhor de
garantias indisponíveis, cujo desrespeito só põe em evidência a
censurável (e inaceitável) face arbitrária do Estado, a quem
não se revela lícito desconhecer que os poderes de que dispõe devem
conformar-se, necessariamente, ao que prescreve o ordenamento
positivo da República.
Cabe relembrar, no ponto, por necessário, a
jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal em torno
da matéria pertinente à posição jurídica que o indiciado –
e, com maior razão, o próprio réu - ostenta
em nosso sistema normativo, e que lhe reconhece direitos e
garantias inteiramente oponíveis ao poder do
Estado, por parte daquele que sofre a persecução penal:
“INQUÉRITO POLICIAL - UNILATERALIDADE - A SITUAÇÃO
JURÍDICA DO INDICIADO.
- O inquérito policial, que constitui
instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento
administrativo destinado a subsidiar a atuação persecutória do
Ministério Público, que é - enquanto ‘dominus litis’ - o verdadeiro destinatário
das diligências executadas pela Polícia Judiciária.
A unilateralidade das investigações
preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a
desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao
indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.
O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de
garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância,
pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a
responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta
desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação
policial.”
(RTJ 168/896-897, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Esse entendimento - que reflete a
própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal construída sob
a égide da vigente Constituição - encontra apoio na
lição de autores eminentes, que, não desconhecendo que o
exercício do poder não autoriza a prática do arbítrio, enfatizam
que, mesmo em procedimentos inquisitivos
instaurados no plano da investigação policial, há direitos titularizados
pelo indiciado, que simplesmente não podem ser ignorados
pelo Estado.
Cabe referir, nesse sentido, o
magistério de FAUZI HASSAN CHOUKE (“Garantias Constitucionais
na Investigação Criminal”, p. 74, item n. 4.2, 1995, RT), de ADA PELLEGRINI
GRINOVER (“A Polícia Civil e as Garantias Constitucionais de Liberdade”,
“in” “A Polícia à Luz do Direito”, p. 17, 1991, RT), de ROGÉRIO LAURIA
TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”,
p. 383, 1993, Saraiva), de ROBERTO MAURÍCIO GENOFRE (“O Indiciado: de Objeto
de Investigações a Sujeito de Direitos”, “in” “Justiça e
Democracia”, vol. 1/181, item n. 4, 1996, RT), de PAULO FERNANDO SILVEIRA (“Devido
Processo Legal - Due Process of Law”, p. 101, 1996, Del Rey), de ROMEU DE
ALMEIDA SALLES JUNIOR (“Inquérito Policial e Ação Penal”, p. 60/61, item
n. 48, 7ª ed., 1998, Saraiva) e de LUIZ CARLOS ROCHA (“Investigação
Policial - Teoria e Prática”, p. 109, item n. 2, 1998, Saraiva), dentre
outros.
Impende destacar, de outro lado, precisamente
em face da circunstância de o indiciado ser, ele próprio, sujeito
de direitos, que os Advogados por ele regularmente
constituídos (como sucede no caso) têm direito de
acesso aos autos da investigação (ou do processo) penal, ainda
que em tramitação sob regime de sigilo, considerada a
essencialidade do direito de defesa, que há de ser
compreendido - enquanto prerrogativa indisponível assegurada
pela Constituição da República - em perspectiva global e abrangente.
É certo, no entanto, em ocorrendo
a hipótese excepcional de sigilo - e para que não se
comprometa o sucesso das providências investigatórias em curso
de execução (a significar, portanto, que se
trata de providências ainda não formalmente incorporadas
ao procedimento de investigação) -, que o acusado (e, até
mesmo, o mero indiciado), por meio de Advogado por
ele constituído, tem o direito de conhecer as informações “já
introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas
à decretação e às vicissitudes da execução das diligências em
curso (...)” (RTJ 191/547-548, Rel. Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE – grifei).
Vê-se, pois, que assiste,
àquele sob persecução penal do Estado, o direito de acesso aos
autos, por intermédio de seu Advogado, que poderá examiná-los,
extrair cópias ou tomar apontamentos (Lei nº
8.906/94, art. 7º, XIV), observando-se, quanto a tal
prerrogativa, orientação consagrada em decisões
proferidas por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR,
Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 90.232/AM, Rel. Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE - Inq 1.867/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS
23.836/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.), mesmo quando
a persecução estatal esteja sendo processada em caráter sigiloso, hipótese
em que o Advogado do acusado, desde que por este constituído
(como sucede na espécie), poderá ter acesso às peças que digam
respeito à pessoa do seu cliente e que instrumentalizem prova já
produzida nos autos, tal como esta Corte decidiu no
julgamento do HC 82.354/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE (RTJ
191/547-548):
“Do plexo de
direitos dos quais é titular o indiciado - interessado primário no
procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e
instrumento a prerrogativa do advogado, de acesso aos autos
respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94,
art. 7º, XIV), da qual - ao contrário do que previu em hipóteses
assemelhadas - não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a
irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do
defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das
investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da
proporcionalidade.
A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria
uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que
lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a
assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe
é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o
investigado de prestar declarações.
O direito do indiciado, por seu advogado, tem
por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não
as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em
curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de
possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência, a
autoridade policial, de meios legítimos para obviar inconvenientes que o
conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial
possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.” (grifei)
Esse mesmo entendimento foi por mim
reiterado, quando do julgamento de pleito cautelar que
apreciei em decisão assim ementada:
“INQUÉRITO
POLICIAL. REGIME DE SIGILO. INOPONIBILIDADE
AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO.DIREITO DE DEFESA.
COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA. GARANTIA
CONSTITUCIONAL. PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO ADVOGADO (LEI
Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV). OS
ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILEGIAR O MISTÉRIO NEM
COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO DO REGIME DE SIGILO, O EXERCÍCIO
DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS POR PARTE DAQUELE QUE SOFRE
INVESTIGAÇÃO PENAL. CONSEQÜENTE ACESSO AOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ
DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA
INVESTIGAÇÃO PENAL. POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA
AQUISIÇÃO DA PROVA. PRECEDENTES (STF). DOUTRINA. MEDIDA
CAUTELAR DEFERIDA.
- O indiciado é sujeito de direitos e
dispõe de garantias plenamente oponíveis ao poder do
Estado (RTJ 168/896-897). A unilateralidade da
investigação penal não autoriza que se desrespeitem as garantias básicas
de que se acha investido, mesmo na fase pré-processual, aquele
que sofre, por parte do Estado, atos de persecução criminal.
- O sistema normativo brasileiro assegura, ao
Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por aquele
submetido a atos de persecução estatal), o direito de pleno acesso
aos autos de investigação penal, mesmo que sujeita a regime de sigilo (necessariamente
excepcional), limitando-se, no entanto, tal prerrogativa jurídica,
às provas já produzidas e formalmente incorporadas ao
procedimento investigatório, excluídas, conseqüentemente, as
informações e providências investigatórias ainda em
curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas
no próprio inquérito. Precedentes. Doutrina.”
(HC 87.725-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO,
DJU 02/02/2007)
Os eminentes Advogados ALBERTO ZACHARIAS TORON e ALEXANDRA
LEBELSON SZAFIR, em valiosa obra - que versa,
dentre outros temas, aquele ora em análise (“Prerrogativas
Profissionais do Advogado”, p. 86, item n. 1, 2006, OAB Editora) -, examinaram,
com precisão, a questão suscitada pela injusta recusa, ao
Advogado investido de procuração (Lei nº 8.906/94, art.
7º, XIII), de acesso aos autos de inquérito policial ou
de processo penal que tramitem, excepcionalmente, em
regime de sigilo, valendo rememorar, a esse propósito,
a seguinte passagem:
“No que concerne ao inquérito policial
há regra clara no Estatuto do Advogado que assegura o
direito aos advogados de, mesmo sem procuração, ter acesso aos
autos (art. 7º, inc. XIV) e que não é excepcionada pela
disposição constante do § 1º do mesmo artigo que trata dos
casos de sigilo. Certo é que o inciso XIV do art. 7º não fala a
respeito dos inquéritos marcados pelo sigilo. Todavia, quando
o sigilo tenha sido decretado, basta que se exija o
instrumento procuratório para se viabilizar a vista dos autos do
procedimento investigatório. Sim, porque inquéritos
secretos não se compatibilizam com a garantia de o cidadão ter ao seu
lado um profissional para assisti-lo, quer para permanecer
calado, quer para não se auto-incriminar (CF, art. 5º,
LXIII). Portanto, a presença do advogado no inquérito e,
sobretudo, no flagrante não é de caráter afetivo ou emocional.
Tem caráter profissional, efetivo, e não meramente
simbólico. Isso, porém, só ocorrerá se o advogado puder
ter acesso aos autos. Advogados cegos, ‘blind lawyers’, poderão,
quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas,
juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que
no inquérito se fizer contra o indiciado.” (grifei)
Cumpre referir, ainda, que a colenda Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o HC 88.190/RJ,
Rel. Min.CEZAR PELUSO, reafirmou o entendimento anteriormente
adotado por esta Suprema Corte (HC 86.059-MC/PR, Rel. Min. CELSO
DE MELLO – HC 87.827/RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), em
julgamento que restou consubstanciado em acórdão assim ementado:
“ADVOGADO. Investigação sigilosa do
Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do suspeito
ou investigado. Intervenção nos autos. Elementos
documentados. Acesso amplo. Assistência técnica
ao cliente ou constituinte. Prerrogativa profissional
garantida. Resguardo da eficácia das investigações em
curso ou por fazer. Desnecessidade de constarem dos autos
do procedimento investigatório. HC concedido. Inteligência
do art. 5°, LXIII, da CF, art. 20 do CPP, art. 7º, XIV, da Lei nº
8.906/94, art. 16 do CPPM, e art. 26 da Lei nº 6.368/76. Precedentes.
É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas
corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente
envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já
documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com
competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam
respeito ao constituinte.” (grifei)
Cabe assinalar, neste ponto, um outro aspecto relevante do tema ora em análise,
considerados os elementos probatórios alegadamente já
produzidos nos autos da persecução penal e, portanto,
a estes já formalmente incorporados, como sucede, no caso
ora em exame, com os autos referentes ao pedido de interceptação
de comunicações telefônicas sob nº 0008464-69.2011.805.0080. Refiro-me
ao postulado da comunhão da prova, cuja eficácia
projeta-se e incide sobre todos os dados
informativos, que, concernentes à “informatio delicti”, compõem
o acervo probatório coligido pelas autoridades e
agentes estatais.
Esse postulado assume inegável importância no plano
das garantias de ordem jurídica reconhecidas ao investigado e ao
réu, pois, como se sabe, o princípio da comunhão
(ou da aquisição) da prova assegura, ao que sofre
persecução penal – ainda que submetida esta ao regime de sigilo -, o
direito de conhecer os elementos de informação já existentes
nos autos e cujo teor possa ser, eventualmente, de
seu interesse, quer para efeito de exercício da
auto-defesa, quer para desempenho da defesa técnica.
É que a
prova penal, uma vez regularmente introduzida no
procedimento persecutório, não pertence a ninguém, mas
integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo,
desse modo, acervo plenamente acessível a todos
quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de persecução
penal por parte do Estado.
Essa compreensão do tema – cabe ressaltar -
é revelada por autorizado magistério doutrinário (ADALBERTO JOSÉ
Q. T. DE CAMARGO ARANHA, “Da Prova no Processo Penal”, p. 31, item n. 3,
3ª ed., 1994, Saraiva; DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES, “O Princípio da
Comunhão da Prova”, “in” Revista Dialética de Direito Processual
(RDPP), vol. 31/19-33, 2005; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”,
p. 259, item n. 17.7, 7ª ed., 2001, Saraiva; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A
Prova Penal”, p. 31, item n. 2, 2ª ed., 2003, Lumen Juris, v.g.), valendo
referir, por extremamente relevante, a lição expendida
por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA (“O Juiz e a Prova”, “in”
Revista de Processo, nº 35, Ano IX, abril/junho de 1984, p. 178/184):
“E basta
pensar no seguinte: se a prova for feita, pouco
importa a sua origem. (...). A prova do fato não aumenta nem diminui de
valor segundo haja sido trazida por aquele a quem cabia o ônus, ou pelo
adversário. A isso se chama o ‘princípio da comunhão da prova’:
a prova, depois de feita, é comum, não
pertence a quem a faz, pertence ao processo; pouco
importa sua fonte, pouco importa sua proveniência. (...).” (grifei)
Cumpre rememorar, ainda, ante a sua
inteira pertinência, o magistério de PAULO RANGEL (“Direito
Processual Penal”, p. 411/412, item n. 7.5.1, 8ª ed., 2004, Lumen Juris):
“A palavra
comunhão vem do latim ‘communione’, que significa ato ou efeito
de comungar, participação em comum em crenças, idéias ou interesses. Referindo-se
à prova, portanto, quer-se dizer que a mesma, uma
vez no processo, pertence a todos os sujeitos processuais
(partes e juiz), não obstante ter sido levada apenas por um deles.
(...).
O princípio da comunhão da prova é um
consectário lógico dos princípios da verdade real e da igualdade das
partes na relação jurídico processual, pois as partes, a fim de
estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem mão do meio de
prova levado para os autos.
(...) Por conclusão, os princípios da
verdade real e da igualdade das partes na relação
jurídico-processual fazem com que as provas carreadas para os
autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja,
dão origem ao princípio da comunhão das provas.” (grifei)
É por tal razão que se impõe assegurar,
aos Advogados, ora reclamantes, o acesso a toda informação já
produzida e formalmente incorporada aos autos da persecução penal em
causa, mesmo porque o conhecimento do acervo probatório pode
revestir-se de particular relevo para a própria
elaboração da defesa técnica por parte dos ora reclamantes.
É fundamental, no entanto, para o efeito
referido nesta decisão, que os elementos probatórios já
tenham sido formalmente produzidos nos autos da persecução penal.
O que não se revela constitucionalmente
lícito, segundo entendo, é impedir que a
indiciada tenha pleno acesso aos dados probatórios, que, já
documentados nos autos (porque a estes formalmente
incorporados ou a eles regularmente apensados), veiculam
informações que possam revelar-se úteis ao conhecimento da
verdade real e à condução da defesa da pessoa investigada (como no caso)
ou processada pelo Estado, ainda que o procedimento
de persecução penal esteja submetido a regime de sigilo.
Sendo assim, em face das razões expostas, e
em juízo de estrita delibação, defiro o pedido
de medida cautelar, em ordem a garantir, à parte reclamante, o
direito de acesso aos autos do procedimento penal nº
0014669-17-2011.805.0080 (e aos documentos a eles já incorporados),
em trâmite perante a Vara de Tóxicos e Acidentes de Veículos da comarca
de Feira de Santana/BA.
Observo, por necessário, que este
provimento jurisdicional assegura, à parte ora reclamante, o
direito de acesso, exclusivamente, às informações, aos
documentos, às decisões e às provas penais já formalmente
introduzidos nos autos do procedimento investigatório em questão ou
a estes já apensados, caso se ache concluído o
respectivo procedimento probatório, como sucede com os autos referentes
ao pedido de interceptação de comunicações telefônicas sob nº
0008464-69.2011.805.0080.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se
cópia da presente decisão, para cumprimento integral, à MMª.
Juíza de Direito da Vara de Tóxicos e Acidentes de Veículos da comarca de Feira
de Santana/BA.
2. Corrija-se a autuação, para que desta constem, como
reclamantes, ** e **, excluindo-se a referência feita a **.
Publique-se.
Brasília, 28 de outubro de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
* decisão publicada no DJe de 7.11.2011
** nomes suprimidos pelo Informativo
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