terça-feira, 4 de setembro de 2012

Direito processual penal. Porte de arma de fogo. Crimes praticados por particulares contra a administração pública. Desobediência. Fundada suspeita. Prisão em flagrante. Prisão ilegal. Prova ilícita. Abuso de autoridade.


Fonte: Boletim 238 do IBCCRIM 

Direito processual penal. Porte de arma de fogo. Crimes praticados por particulares contra a administração pública. Desobediência. Fundada suspeita. Prisão em flagrante. Prisão ilegal. Prova ilícita. Abuso de autoridade.

4.ª Vara Criminal da Seção Judiciária de Florianópolis/SC Processo 023.12.030817-0 j. 11.06.2012 - public. 11.06.2012
“Vistos para sentença.
Com a vinda do auto de prisão em flagrante, foi determinada abertura de vista ao Ministério Público antes da análise do artigo 310 do CPP. Com vista dos autos, manifestou-se o Parquet pela legalidade do flagrante e pelo arbitramento de fiança para todos os conduzidos. Ofereceu denúncia. Trato, pois, de ação penal intentada pelo representante do Ministério Público em face de A.N.P.J., C.E.S., E.S.O. e R.H.D.O., todos já qualificados nos autos, imputando-lhes a prática do crime de transporte ilegal de arma de fogo (art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03), e quanto a C.E.S., ainda, o cometimento do delito de desobediência (art. 330 do Código Penal), assim descritos na peça acusatória:
‘1º Fato – Desobediência
Na madrugada do dia 1º de junho de 2012, por volta da 0h30min, na Rua X, Centro, nesta Cidade, o denunciado C.E.S. desobedeceu ordem legal de parada solicitada pela Guarda Municipal de Florianópolis/SC, em razão de manobras bruscas na condução do veículo (...).
Ao agir, o denunciado, juntamente com as pessoas abaixo identificadas, ao perceber a aproximação da viatura da Guarda Municipal, empreendeu fuga, na condução do sobredito veículo, ocasião em que foi perseguido e, no local acima indicado, recebeu ordem legal de parada dada por um funcionário público, ou seja, um dos Guardas Municipais, à qual não obedeceu.
2º Fato – Transporte Ilegal de Arma de Fogo
Na madrugada do dia 1º de junho de 2012, (...), os denunciados A.N.P.J., C.E.S., E.S.O. e R.H.D.O., em comunhão de esforços e conjugação de vontades, transportavam, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, dentro do veículo SEAT/CORDOBA, (...), arma de fogo de uso proibido e munições, consistentes em 1 (um) revólver marca Taurus, calibre 38, com a numeração suprimida/raspada e municiado com 6 (seis) cartuchos intactos, conforme o Termo de Exibição e Apreensão da fl. 21’.
Nesse contexto, os denunciados, previa­mente ajustados entre si, aderidos à conduta um do outro, ao receberem a ordem de parada proferida pela Guarda Municipal desta Cidade, jogaram pela janela do automóvel acima detalhado, onde todos estavam trafegando, a referida arma de fogo que transportavam ilegalmente.
Ato contínuo, arrancaram bruscamente com o carro, mas decidiram parar cerca de 500 metros daquele local, onde a Viatura n. 106 da Guarda Municipal encontrou o artefato por eles dispensado, razão pela qual foram todos presos em flagrante delito.
Vieram os autos conclusos.
É o relatório.
Fundamento e decido.
Da análise do auto, não obstante já ter o Ministério Público oferecido denúncia e entendido pela legalidade da apreensão da materialidade de delito e do próprio flagrante efetuado, insta reconhecer que, nos termos do artigo 144, seus incisos e § 8º, da Constituição da República, o flagrante foi ilegal. Com efeito, não se desconhece a polêmica instaurada em torno do ‘rol’ do mencionado artigo 144 – se taxativo ou não – despeito de uma simples leitura conduzir à conclusão de que tal ‘rol’ é, de fato, taxativo.
Recentemente, na ADIN n. 2.827-RS, (...) reconheceu a taxatividade do rol disposto no artigo 144, sendo defesa (sic) aos Estados-membros a criação de órgão de segurança pública diverso daqueles previstos no mencionado.
(...)
Ora, se o rol do artigo 144 da CR é taxativo, não se pode tolerar a atuação da Guarda Municipal em exercício de polícia ostensiva (preventiva). No presente caso, os guardas municipais, ao visualizarem veículo com quatro integrantes, em situação na qual não havia existência flagrante de delito aparente (...), mas, na suspeita levantada, passaram a perseguir, em evidente abuso de autoridade, o veículo alvo da fiscalização, para depois realmente se certificarem de que havia crime. (...) Sua função constitucional é guardar espaços públicos e não fazer ação típica de polícia, instituição que não é! Nesse sentido, a ordem de parada por parte da Guarda Municipal foi ilegal, pois, sem flagrante delito ocorrendo e ex ante, jamais poderia ter perseguido e mandado parar o veículo.
Interessante notar, a respeito da atuação do Ministério Público, que tal posicionamento também foi abraçado institucionalmente. (...).
Nessa senda, a ineficiência do Estado na segurança pública não pode se sobrepujar ao Estado Democrático de Direito. (...) Ocorre que num Estado Democrático de Direito, os ‘fins’ não podem justificar os ‘meios’. Não fosse isso, não haveria a proibição de utilização de provas ilícitas no ordenamento. (...) Portanto, não é possível tolerar inconstitucionalidades flagrantes, tais como a atuação da Guarda Municipal de Florianópolis com atribuição das Polícias. Sublinhe-se que quando houver flagrante se pode prender, como qualquer do povo. Não se pode é fazer ‘blitz’, mandar parar, fazer averiguações, porque tudo isso não lhes é autorizado pelo Direito!
Discutir tal alteração remete necessa­riamente à discussão sobre a delegabilidade ou não do Poder de Polícia (...).
Nesse ponto, existe posicionamento da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (HC n. 2009/0035533-0) entendendo que a Guarda Municipal, ao realizar polícia ostensiva (atribuição exclusiva da polícia militar, art. 144, § 5º, CR), atuaria no permissivo elencado no artigo 301 do Código de Processo Penal (...). É de se registrar que tal entendimento, correto, inclusive, não encontra respaldo no caso em concreto.
Isso porque não havia qualquer estado de flagrância no momento em que a Guarda Municipal passou a perseguir o veículo com os conduzidos. E mais: pronunciou ordem de parada, sem, entretanto, ter competência para fazê-lo, atuando contra a lei e o disposto na CR.
(...)
Frise-se que o veículo conduzido por C.E.S. passou em frente aos guardas municipais, os quais – aí desnuda-se a típica realização de atos de polícia militar – ‘julgaram’ estarem os integrantes do veículo em ‘atitude suspeita’, passando a persegui-los.
O próprio guarda municipal esclarece que, percebendo atitude suspeita, passou a seguir o veículo. Trata-se evidentemente de atividade típica da Polícia Militar – prevenção da ordem pública – dado que não havia qualquer estado de flagrância. Consequentemente, a ordem de parada foi ilegal.
(...)
Mutatis mutandis, quando os guardas municipais avistaram o veículo com quatro integrantes, não havia qualquer delito flagrante. Apenas o fato de quatro homens estarem no interior do automóvel, em subjetiva ‘atitude suspeita’.
Ressalta-se que tal informação é por demais relevante, pois somente foi verificada a presença de delito quando os membros da Guarda Municipal passaram a agir como polícia ostensiva, visualizando veículo suspeito e não comunicando incontinenti a Polícia Militar. Ao contrário, os próprios agentes exerceram fiscalização e efetuaram a abordagem do veículo. (...)
Portanto, não se diga que alguém ‘do povo’, ao ver passar veículo com indivíduos em atitude suspeita, pode persegui-lo e ordenar a parada do automóvel para fiscalização. O que os guardas municipais fizeram foi fiscalização preventiva.
Na sequência, ante o ato de fiscalização, aí sim houve arma sendo dispensada. Depois se deu o flagrante, mas a atuação já era totalmente ilegal.
Cabe aqui mencionar a citação trazida por Thiago Augusto Vieira, na monografia (...) (Florianópolis, UFSC, 2010, p. 32):
‘A primeira condição de legalidade é a competência do agente. Não há, em direito administrativo, competência geral ou universal: a lei preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o momento do exercício das atribuições do cargo. (...)’
Verificando a ilegalidade da atuação da Guarda Municipal em matéria de polícia ostensiva, o juízo da 7ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de São Paulo (Autos n. 0004088-31.2009.4.03.6181), absolveu o acusado por conta da atuação da Guarda Municipal.
É oportuna a citação de parte da sentença:
‘(...) É notório que depois de mais de 20 anos da chamada ‘Constituição Cidadã’ em vigor, o Estado ainda não conseguiu, nem se esforça para tanto, dar cumprimento aos direitos fundamentais nela assegurados. (...) A ação dos guardas civis não pode ser chancelada pelo Poder Judiciário. A prova produzida mediante ação abusiva do Estado deve ser, conforme manda a Constituição Federal, declarada ilícita, nos termos do artigo 5.º, inciso LVI, da Carta Magna.
A apreensão das duas cédulas pelos guardas civis foi ilegal. Neste aspecto, ante a ilicitude da prova, e considerando a ausência de qualquer outra não contaminada por aquela, deve-se reconhecer a total ausência de provas contra o acusado, até porque, recaindo a ilicitude na própria prova material, a existência do crime pode ser completamente desconsiderada nestes autos. Ainda que assim não fosse, sendo ilícita a diligência realizada pela guarda civil, também o crime, no aspecto da autoria, resta indemonstrado. (...)’
In casu, admitir prova obtida ilicitamente seria convalidar a atuação inconstitucional da Guarda Municipal de Florianópolis como polícia ostensiva. Trata-se, pois, de vício insanável, que atenta contra a Constituição da República (...).
Revelada a atuação inconstitucional e ilegal da Guarda Municipal, que exerceu fiscalização (polícia ostensiva), nascedouro do flagrante que se lê integrando a denúncia ofertada, verifica-se a ilegalidade da materialidade de delito obtida através de tal atuação, a qual, não sendo de se obter por qualquer outro meio lícito, nas circunstâncias demonstradas, é desconsiderada como prova do crime, o que arrasta para o mesmo destino a autoria do delito.
Por tais razões, nos termos do artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal, rejeito a denúncia de fls. II-VI, diante ausência de materialidade.
(...)”.
Alexandre Morais da Rosa
Juiz de Direito.

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