quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Da garantia da ordem pública como fundamento de decretação da prisão preventiva

Uma vez mais: da garantia da ordem pública como fundamento de decretação da prisão preventiva


Bruno César Gonçalves da Silva

Mestre em Direito Processual pela PUC-Minas, professor de Processo Penal na

pós-graduação da Faculdade Milton Campos


INTRODUÇÃO

O ainda vigente Código de Processo Penal Brasileiro, implantado em pleno "Estado

Novo", teve como modelo o Código de Processo Penal Italiano de 1930, gerado pelo

regime fascista e que seguia os postulados da Escola Técnico-Jurídica. Em

conseqüência disto, o CPP apresenta enfoque marcadamente autoritário, que pode

ser constatado em várias de suas disposições, notadamente nas referentes às

prisões provisórias, cuja aplicação automática dispensava, em certas hipóteses,

qualquer justificativa assentada em razão de cautela.

Com o advento da Constituição da República em 1988, a proclamação de interesse

oposto ao autoritarismo e a consagração de garantias a favor da liberdade

individual, cujo fundamento está na dignidade da pessoa humana e tem como um

de seus vetores o princípio da presunção de inocência, esculpido no artigo 5º, LVII,

da CF e nos Pactos Internacionais dos quais o Brasil é signatário, impôs-se efetiva

mudança na mentalidade dos operadores do Direito. Agora, a regra é a liberdade, a

prisão é uma exceção, cujo fundamento decorre de sentença penal condenatória

transitada em julgado, ou de uma razão de cautela que comprove a necessidade de

sua decretação no curso do inquérito ou do processo criminal.

Reconhece-se então, a necessidade de uma releitura de várias normas dispostas no

antigo Código de Processo Penal Brasileiro, para adequá-las ao atual paradigma

constitucional.

Neste contexto, é que surge a necessidade de (re)discutir-se o conceito de

"garantia da ordem pública", para delimitar sua aplicação como fundamento de um

decreto de prisão preventiva, pois, o seu conceito que sempre foi de difícil

interpretação, dando margem a arbitrariedades, esbarra em postulados

constitucionais, devendo-se verificar até mesmo sua natureza jurídica, para saber

se a luz destes postulados pode ser considerada uma verdadeira razão de cautela.

NATUREZA JURÍDICA DA "GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA"

Entre os juristas brasileiros que se insurgiram contra a prisão preventiva com

fundamento na "garantia da ordem pública", destaca-se Gomes Filho (1991), que

demonstrou-nos não possuir a idéia de "ordem pública" caráter instrumental

relacionado com os meios e fins do processo, veja-se:

À ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades do encarceramento

provisório que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente

ditas, mas constituem formas de privação da liberdade adotadas como medidas de

defesa social; fala-se, então, em "exemplaridade", no sentido de imediata reação

ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade; ou,

ainda, em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos

crimes; uma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente

propenso a práticas delituosas ou, ainda, indicar a possível ocorrência de outras,

relacionadas à supressão de provas ou dirigidas contra a própria pessoa do

acusado. (GOMES FILHO, 1991, p. 67-68)

Delmanto Júnior (1998), comentando a decretação da prisão preventiva com base

na garantia da ordem pública, considera

ser indisfarçável que nesses termos a prisão preventiva se distancia de seu caráter

instrumental – de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu

resultado – ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de instrumento de

justiça sumária, vingança social etc. (DELMANTO JUNIOR, 1998, p.156)

Assim, dúvida não resta que falta à prisão preventiva decretada com base na

"garantia da ordem pública" caráter instrumental inerente a toda medida cautelar,

pois, esta visa assegurar os meios e os fins do processo, ao passo que na "ordem

pública" não se vislumbra este caráter, não possuindo tal expressão limites rígidos

para a sua definição, dando azo ao arbítrio e a casuísmos na restrição da liberdade.

O apelo à forma genérica e retórica da "garantia da ordem pública" representa a

possibilidade de superação dos limites impostos pelo princípio da legalidade estrita,

propiciando um amplo poder discricionário ao juiz com "uma destinação bastante

clara: a de fazer prevalecer o interesse da repressão em detrimento dos direitos e

garantias individuais". (GOMES FILHO, 1991, p. 66)

INTERPRETAÇÕES DADAS À "GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA"

A "garantia da ordem pública" será chamada a socorrer diversas interpretações a

ela dada, com os mais diversos fins, havendo principalmente na jurisprudência,

enorme casuísmo no trato da matéria, conduzindo a interpretações as mais

variadas, o que gera uma insuportável insegurança jurídica no trato de tema tão

importante, qual seja, a privação da liberdade antes do trânsito em julgado de

sentença penal condenatória.

Do resgate das expressões utilizadas para dar significado à "garantia da ordem

pública", constata-se que as mesmas são em verdade fórmulas vazias e sem

conteúdo processual, como por exemplo, a ‘potencialidade lesiva do crime’ ou

‘gravidade do delito’, a ‘preservação da credibilidade na Justiça’, a ‘periculosidade

do agente’ ou ‘reiteração criminosa’, o ‘clamor público’, entre outras presentes na

jurisprudência (1).

A ‘potencialidade lesiva’ ou ‘gravidade do delito’, ao nosso ver, não poderá servir de

base para a manutenção da prisão de alguém, afinal, isto por si só não enseja a

custódia do agente, uma vez que não mais existe prisão preventiva obrigatória para

crimes graves na legislação brasileira, devendo-se demonstrar no caso concreto,

quais elementos indicam o periculum libertatis. Veja-se a orientação do Supremo

Tribunal Federal:

"A gravidade do crime imputado ao réu, por si só, não é motivo suficiente para a

prisão preventiva". STF, HC. nº 67.850-5 (2).

O argumento de que a necessidade de ‘preservação da credibilidade na justiça’

pode acarretar a prisão para "garantia da ordem pública", é dos que mais atenta

contra os princípios processuais penais cautelares, pois, "a prisão preventiva não

pode ser instrumento da ação judicial para servir a essa pobreza cultural que exige

cadeia imediatamente para todo e qualquer acusado..." (3). A via da ‘exemplaridade’

e da ‘satisfação do sentimento de justiça’, não são fundamentações coerentes para

a prisão preventiva, pois, tratam-se de aplicação de uma justiça sumária, que viola

o devido processo legal e a presunção de não-culpabilidade.

O argumento relativo à ‘periculosidade do agente’, que visa fundamentar a prisão

preventiva para que o agente não ‘volte a delinqüir’, não ‘prossiga na reiteração

criminosa’ ou não ‘consume um crime tentado’, acarreta verdadeira presunção de

culpabilidade, conforme Delmanto Junior

Sem dúvida, não há como negar que a decretação de prisão preventiva com o

fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo,

em dupla presunção: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito;

a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro

crime ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado. (...) Com a

referida presunção de reiteração, restariam violadas, portanto, as garantias

constitucionais da desconsideração prévia de culpabilidade (Constituição da

República, art. 5º, LVII) e da presunção de inocência (Constituição da República,

art. 5º, § 2º, c/c os arts. 14, 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e

Políticos, e 8º, 2, 1ª parte, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).

(DELMANTO JUNIOR, 1998, p. 152-153)

Afirma ainda o autor que neste caso, a prisão preventiva perde seu caráter cautelar

de tutela da efetividade do processo transformando-se em meio de prevenção

especial e geral, fins exclusivos da sanção penal, configurando verdadeira punição

antecipada. (DELMANTO JUNIOR, 1998, p. 165)

No mesmo sentido é a opinião de Almeida (2003) e Lopes Júnior (2005) ao

considerar que manter "uma pessoa presa em nome da ordem pública, diante da

reiteração de delitos e o risco de novas práticas, está se atendendo não ao

processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia

ao objeto e fundamento do processo penal" (LOPES JÚNIOR, 2005, p. 203).

Também é amplamente contestado talvez seja esta a fórmula mais criticada,

ventilar que o ‘clamor público’ pode fundamentar a prisão preventiva. Isto, pois,

‘ordem pública’ e ‘clamor público’ são coisas distintas e este não implica

necessariamente naquele. Ademais, na maioria dos casos concretos, não se

vislumbra qualquer alteração excepcional no bojo social, que não seja a decorrente

de qualquer delito que se cometa. Conforme Lopes Júnior,

é inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar o alarma social, e

por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão

preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado,

enquanto reserva ética, pode assumir papel vingativo. (LOPES JUNIOR, 2005, p.

206)

CONCLUSÕES

1. A "garantia da ordem pública" não possui caráter cautelar propriamente dito,

tendo na verdade finalidades que ora são meta processuais, ora são exclusivas das

penas.

2. As interpretações dadas à expressão "garantia da ordem pública" são violadoras

do princípio da presunção de inocência, pois, ou desconsideram a avaliação da

necessidade da medida, ou se fundam em presunções e antecipações do juízo de

culpabilidade.

3. Devemos na interpretação e aplicação das medidas cautelares, nos libertarmos

dos resquícios do autoritarismo e assimilarmos a nova orientação constitucional,

lembrando-nos sempre que, dentro deste novo paradigma, os fins nunca podem

justificar os meios.

4. PORPOSIÇÃO: Não sendo a "garantia da ordem pública" uma Razão de Cautela

propriamente dita, a mesma não deve ser suficiente à decretação da prisão

preventiva, só podendo ser decretada a prisão em um caso concreto, quando existir

um fundamento de natureza realmente cautelar, que demonstre risco à efetividade

do processo.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Gabriel Bertin de. Afinal quando é possível a decretação da prisão

preventiva para garantia da ordem pública? Revista Brasileira de Ciências

Criminais. São Paulo, v. 44, p. 71-85, 2003.

CHOUKR, Fauzi Hasson. A "ordem pública" como fundamento da prisão cautelar –

uma visão jurisprudencial. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo,

v. 4, p. 89-93, 1993.

DELMANTO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo

de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar.

São Paulo: Saraiva, 1991.

LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal – fundamentos da

instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005.

NOTAS

01 CHOUKR, Fauzi Hasson. A "ordem pública" como fundamento da prisão cautealar

– uma visão jurisprudencial. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São

Paulo, v.4, p. 89-93, 1993.

02 Neste mesmo sentido temos ainda o HC 65.950, HC 76.730 e HC 79.204, dentre

outros, todos do STF.

03 Min. Edson Vidigal, STJ, RHC nº 2.725-7.

Um comentário:

  1. Artigo publicado inicialmente pelo ICP, e posteriormente disponibilizado na rede. Encontra-se disponível também no site www.brunocesaradvocacia.com.br

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